Estes quase dois meses desde o início do ano letivo têm-nos trazido muitos desafios e, junto com eles, muitas questões.
Uma das questões que frequentemente nos ocupa o pensamento, e que agora ressurge com a decisão do governo de tornar o pré-escolar obrigatório, é: Que andamos nós a fazer às nossas crianças?
Esta questão surge pelas muitas conversas que temos tido com pais. Percebemos que muitos se sentem perdidos e sozinhos, sentindo que poucos os querem escutar e muitos não os entendem. Esta conclusão baseia-se na quantidade de questões que nos foram colocadas desde o início deste ano letivo e que nos levam a este apelo que hoje vos colocamos aqui.
Desde o momento em que os pais sabem que "estão grávidos", toda a sua vida muda. São inundados de informações, conselhos e preocupações, quer queiram ou não essa informação. A vida é invadida por coisas que precisam adquirir, escolher, hábitos a mudar ou adaptar, pessoas a consultar... Falamos de algo tão simples como a compra de um berço (que muitas crianças nunca chegam a usar), da alimentação que se tornou um tema complexo, do peso que devemos controlar, das fraldas a usar, da escolha do médico (para os que têm essa sorte), e frequentemente das escolas a considerar, desde a creche até ao ensino superior! E quando a criança nasce, esta lista só aumenta.
Hoje, a acrescentar aos amigos, conhecidos e familiares, temos as redes sociais (oh, p´ra nós aqui!) que nos inundam com deveres e imprescindíveis, que ainda nem sabemos se vão ao encontro dos valores da nossa família. Mas contribuem para a nossa caixa de "coisas a considerar", para sabermos se estamos a fazer tudo ao nosso alcance para que o nosso filho tenha o melhor início de vida. E, como todos queremos o melhor para os nossos filhos, dentro das nossas capacidades financeiras, sociais e familiares, tentamos providenciar tudo o que garanta que nada faltará ao nosso filho e que este terá uma entrada no mundo plena de tudo o que consideramos importante, seja física, emocionalmente ou mesmo em termos materiais.
De repente, chega o dia em que, por várias razões, temos de escolher um espaço externo ao nosso lar para receber o nosso filho. Começamos a idealizar um espaço que acompanhe e ajude a manter todos aqueles ideais que temos e defendemos do que deve fazer parte de uma infância feliz e saudável. E o que acontece?
Quando muitos de nós tiveram imensa dificuldade em deixar o nosso filho com algum familiar ou amigo, ou passaram horas a buscar um(a) babysitter para aqueles momentos em que tivemos a necessidade de alguém ficar com ele, por um bocadinho que seja, somos confrontados com a escolha de um espaço onde temos de deixar o nosso filho por grande parte do dia, independentemente da sua idade. Essa escolha muitas vezes pouco depende de nós.
Muitos de nós temos de acomodar os nossos ideais à oferta disponível ou então tomar a decisão de ficar com ele até à escolaridade obrigatória, e aí logo se vê!
Pode parecer uma visão exagerada, mas acreditamos que, tal como nós, todos vocês que passaram por esta decisão sabem do que estamos a falar. Mas lá respiramos fundo e lembramo-nos que o mundo ideal está na mente de cada um e muito dificilmente encontraremos o espaço perfeito. Felizmente, conseguimos encontrar algum espaço que nos tranquilize e onde sentimos que este irá receber o nosso filho como o ser único que ele é.
Mas agora queremos chamar a atenção para algo que sentimos que muitas vezes é esquecido...
Se estivermos a falar que os pais necessitarão de um espaço logo após a licença de maternidade terminar, a maioria destes pais tem de escolher este espaço possivelmente ainda antes da criança nascer. Todos sabemos como não existe oferta suficiente, a pública é inexistente, e as listas de espera das creches e amas são normalmente de anos!
O que acontece é que a maioria de nós nem sequer imagina o que o tornarmo-nos mães ou pais vai alterar na nossa vida e muito menos o que nos vai alterar a nós mesmos como seres humanos. Hoje em dia, a ciência já nos explica este processo e como ele impacta não só as mães, como se pensava inicialmente, mas também os pais ou parceiros que estão ativamente presentes na vida da criança. E o que isso importa?
Importa porque uma decisão tomada antes do bebé nascer pode tomar uma perspectiva totalmente diferente depois deste nascer e fazer parte da nossa vida. E nada nos garante que aquilo que imaginávamos ser bom para os nossos filhos agora continue a nos parecer "bom o suficiente".
Não estamos a dizer que esta seja a realidade de todos, pois muitos pais poderão nunca ter sentido isto ou terem experiências muito diferentes. Mas sabemos, por experiência própria e pelos muitos relatos que escutamos, que esta é a realidade de muitos de nós.
Acreditamos que muitos no momento possam ter escolhido um espaço por proximidade da casa ou trabalho, por referências de alguém, ou porque simplesmente foi onde tiveram a sorte de ter vagas. Mas agora esta decisão pode ser questionada e os pais deparam-se com a impossibilidade de alterá-la ou a única alternativa ser, mais uma vez, um dos membros do casal ficar com a criança em casa. Pior ainda, muitos pais só neste momento chegam à conclusão que pouco sabem do espaço em questão, muito menos quem são as pessoas a quem irão confiar os filhos. Muitos espaços, devido a todas as peculiaridades destes últimos dois anos letivos, não permitem a visita às instalações quando estas estão em pleno funcionamento, ou tão pouco houve a possibilidade de um contacto prévio com os cuidadores.
Escutámos que muitas inscrições foram feitas pelos diretores dos espaços, alguns destes pouco contacto direto têm com a criança (felizmente não todos) e a informação rece
bida agora "sabe a pouco" e deixa muitas dúvidas e, por vezes, até angústias.
Percebemos que aqui é que "cai a ficha" a muitos pais, como se costuma dizer. Perceberam agora o quanto aquele ser tão pequenino mudou o seu mundo de todas as formas possíveis.
E agora começa o nosso apelo...
Quando os pais recorrem aos espaços em questão, colocam questões, pedem alternativas e que lhes deem algum conforto e segurança, aí é que as coisas se tornam, a nosso ver, em alguns casos (atenção, não estamos a generalizar, mas foram muitos os relatos) muito tristes.
Muitas respostas aos pais são algo como: "Fiquem descansados, eles habituam-se"; "Isso são nervos de pais de primeira viagem"; "Nós já fazemos isto há muitos anos, sabemos que assim é melhor"; "Não há nada a fazer, são as orientações/regras devido à pandemia".
E para os pais, algo que deveria ser uma mensagem de conforto tornou-se um sinal de alarme: como ficar descansados? Como podemos confiar cegamente em alguém que não conhecemos de lado nenhum só porque esta pessoa tem um diploma que lhe permite exercer a função?
Quando todo o nosso ser grita o contrário, como tranquilizarmo-nos com palavras sem (re)a
ção? Todos sabemos que só conseguimos confiar em quem estamos vinculados/ligados de alguma forma e, por aí é o caminho.
Vamos ser sinceros, se até quando vamos ao cabeleireiro pedimos opiniões, visitamos o espaço, escutamos as críticas, e muitas vezes só depois de ver o resultado do trabalho noutros, e ver a pessoa no seu meio, confiamos nela para tratar do nosso cabelo, e estamos a falar de uma questão estética... Como podemos considerar aceitável entregar o nosso filho, o ser que depende totalmente de nós, e a quem temos um amor incondicional, a alguém que não nos permite questionar ou visionar a sua forma de trabalhar? Ou sequer oferece alternativas? A quem faz isto sentido? Principalmente quando estamos a falar de seres pré-verbais ou com vocabulário reduzido e altamente sensíveis?
Caros educadores e cuidadores, sabemos que a vida nestes dois últimos anos letivos tem-se movido demasiado rápido, tudo é incerto e inconstante, o que por vezes nos impede de tomar decisões claras, pois sentimos que não temos tempo nem para respirar. Também nós, por vezes sentimos, que estamos num rio que transbordou e não pára de correr e a muito custo tentamos manter a cabeça de fora, para respirar e sobreviver, e sentimos que o corpo vai ao sabor da corrente, não nos pertence. Mas está na altura de agarrar num ramo, saltar para a margem mais próxima e assentar os pés bem firmes no chão. Não podemos deixar que seja a corrente a decidir o nosso percurso pois em nós foi depositada a confiança maior que algum ser pode oferecer a outro: a partilha da guarda dos seus filhos, das crianças que são o futuro deste mundo e que em tudo dependem de nós.
Está na altura de assumirmos que é precisa uma mudança, e a mudança começa em cada um de nós. Temos de passar deste clima de insegurança, preocupação e ansiedade para um de calma, confiança e relação. E é muito mais simples do que se possa imaginar.
O primeiro passo é escutar! Escutem, escutem mas escutem com o coração.
Parem e olhem ao vosso redor, o que sentem? Faz-vos sentido o que nos é pedido? Se não, que podes fazer para fazer a diferença?
A mudança surge do nosso descontentamento, e não podemos acreditar que qualquer adulto sinta que é correto retirar filhos dos braços dos pais sem existir uma conexão prévia com esta criança ou esta família, que é mais importante cumprir programa que dar colo, que apresentar "trabalho" é mais significativo do que simplesmente estar presente.
Sabemos que muitos de nós temos situações em que parece que somos os únicos que queremos a diferença, e temos medo de tomar o primeiro passo, mas as mudanças começam assim, com pequenos passos mas certos e confiantes de que o nosso caminho trará aquilo que o nosso coração pede. E é tão natural, quando começamos a seguir o nosso coração tudo parece começar a encaixar no seu lugar.
Somos educadores de infância, a nossa missão é partilhar a guarda com todas as famílias que nos confiaram os seus filhos. E o primeiro passo para merecermos esta confiança é fomentar a relação, e para isso é necessário, calma e confiança e tempo. Não nos vamos preocupar com o trabalho do outono, a decoração da sala, a visita de "estudo" ou a aula de música.
Vamos estar presentes, calmos e confiantes, fazer as nossas crianças sentirem que entraram num espaço seguro e que nós estamos ali simplesmente para elas. Vamos responder às suas necessidades básicas primeiro e veremos que tudo o resto virá depois, natural e consequentemente.
Nós somos os guardiões das crianças e é nosso dever filtrar tudo o que entra nas suas vidas. Se permitirmos que seja o mundo exterior a dominar as nossas decisões, vamos estar a alimentar situações de stress, que só lhes causará desorientação, que fará que elas não confiem em nós porque lhes estamos a falhar, pois estamos a escutar o mundo lá fora e não quem está diante de nós. A calma e a harmonia começa em nós - na nossa relação com elas!
Como nos diz Gordon Neufeld:
"Do que precisam as crianças para amadurecer verdadeiramente?"
Nenhuma pergunta poderia ser mais importante para a criação dos nossos filhos e o futuro bem-estar de nossa sociedade.
1) Para que ocorra a maturação, as crianças precisam se VINCULAR profundamente no(s) adulto(s) responsáveis por elas;
O pré-requisito fundamental tem a ver com a necessidade preeminente das crianças - de ter um sentido de contato e ligação com os seus responsáveis. A base do desenvolvimento não é o crescimento, mas a criação de um contexto de conexão em que a criança pode ser cuidada.
a) para encontrar a nutrição necessária para apoiar o seu crescimento;
Os apegos da criança também servem a um segundo propósito. Eles criam um útero externo dentro do qual o crescimento e a maturação podem ocorrer. Para usar uma analogia com as plantas, antes que o crescimento aconteça e a fecundidade ocorra, a planta precisa estar bem enraizada para colher os nutrientes do solo. Temos de criar essas raízes de apego. (...)
A descoberta mais significativa em relação ao apego humano é que a capacidade de nos relacionarmos leva anos a se desenvolver e passa por cerca de seis estágios antes de atingir todo o seu potencial. Isto se as condições forem favoráveis (...)
O fundamental problema humano, quando visto da perspectiva de apego, é como manter a vinculação quando separados (ou seja, como preservar um sentido de conexão quando distantes fisicamente)."
E é esse o nosso papel fundamental, antes de qualquer preocupação didática, temos nós de encontrar o meio para sermos a ponte desta vinculação e podermos ser outra figura de vinculação de cada criança.
E para isso, escutem os pais, encontrem formas de saber mais sobre aquela família, aquela criança, de como podem tranquilizar a família e harmonizar o processo. Por favor, não roubem a infância em nome da "Educação"!
Vamos todos ser os agentes de mudança nesta fase tão conturbada, em vez de contribuirmos para a desorientação das orientações!
E é sempre bom lembrarmos o que nos diz a Lei:
Lei n.º 5/97 de 10 de Fevereiro
Lei Quadro da Educação Pré-Escolar
Artigo 2.º
Princípio Geral
A educação pré-escolar é a primeira etapa da educação básica no processo de educação ao longo da vida, sendo complementar da ação educativa da família, com a qual deve estabelecer estreita cooperação, favorecendo a formação e o desenvolvimento equilibrado da criança, tendo em vista a sua plena inserção na sociedade como ser autónomo, livre e solidário.
E não se esqueçam, amanhã é o último dia para fazerem ouvir a nossa voz. O pré-escolar deve ser universal e gratuito, mas nunca obrigatório!
[Link para a consulta pública]
Bibliografia:
Neufeld, G. - Keys to Well-Being in Children - Brussels - 13 November 2012
Se não viram, por favor, assistam:
[Link para o vídeo de Gordon Neufeld]
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