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Além do Tédio: Redescobrir a Arte de Ser Criança na Era Digital

Atualizado: 9 de jan.



A infância errante e sem rumo, ao estilo Tom Sawyer, realmente não existe mais – pelo menos para o grande subgrupo das crianças que vivem em cidades. Elas passam mais tempo do que nunca na escola, a fazer trabalhos de casa e em atividades de enriquecimento. O pouco tempo que resta depois é muitas vezes gasto em desportos organizados ou outras atividades em que os adultos são os orientadores e líderes.


Um estudo norueguês indica também que o uso de áreas naturais pelas crianças perto das suas casas mudou substancialmente de espontâneo e auto-iniciado para fazer parte de atividades planeadas, organizadas e controladas por adultos. Este estudo explora a associação entre mudanças nas brincadeiras ao ar livre e padrões mais amplos de mudança na infância de hoje, à medida que quantidades crescentes de tempo de brincadeira são gastas em instituições e atividades organizadas, ou ocupadas pelo uso de computadores e internet. O artigo discute esses efeitos em termos das relações sociais e da formação da identidade das crianças.


Parte destas conclusões podem ser atribuídas a uma cultura recente de parentalidade intensiva, que pede aos pais que forneçam entretenimento quase constante aos seus filhos. O que leva a que as crianças realmente não tenham tempo para ficar entediadas e que muitas nem sequer tenham tempo para iniciar as suas próprias atividades.


E assim, hoje em dia, observamos que a maioria dos adultos teme que as crianças não tenham nada para fazer, quando na realidade deveríamos estar todos a defender “o direito das crianças de ficarem aborrecidas”. E vamos explicar porquê!


Para todo o lado que olhamos e procuramos uma criança que esteja a desfrutar de "tempo livre", fora em momentos no exterior, especialmente se não forem no meio da natureza, o que vemos com maior regularidade são crianças submetidas a atividades extra-escolares cada vez mais elaboradas ou rodeadas de brinquedos, cada vez mais e mais sofisticados, e/ou a serem assistidas pelo ecrã do computador, tablet, telemóvel ou TV.


Além disso, observamos uma necessidade de constante interação e intervenção por parte do adulto, muitas vezes a providenciar sugestões e soluções para questões que as crianças ainda não colocaram. O que muitas vezes nos põe a pensar que stressante é ser criança hoje!


O tédio hoje em dia, é então quase uma espécie em vias de extinção nas vidas das nossas crianças, o que é um grande problema atual, pois ele ajuda as crianças a desenvolver estratégias de planeamento, habilidades de resolução de problemas, flexibilidade e organizacionais – habilidades-chave que as crianças cujas vidas geralmente são altamente estruturadas, na generalidade não têm.


Para começar, não é o tédio em si que ajuda as crianças a adquirir essas habilidades – mas sim o que elas fazem com o tédio. Se normalmente as crianças não planejam os seus dias, quando trabalham num projeto para preencher o seu tempo, elas precisam de criar um plano, organizar os seus materiais e resolver problemas, o que lhes dá a possibilidade de desenvolver uma série de habilidades. Habilidades que ajudam as crianças a gerir tarefas, e a planeá-las, a fazer planos de longo prazo e a ter flexibilidade ao trabalhar em projetos de grupo, o que desenvolve habilidades sociais.


O tédio ajuda também as crianças a desenvolver tolerância a experiências menos ideais. O tédio pode não ser super angustiante, mas não é divertido. E a vida exige que saibamos gerir as nossas frustrações e regulamos as nossas emoções quando as coisas não acontecem da forma que desejamos, e o tédio é uma ótima maneira de ensinar essa habilidade.


Então que significa tudo isto?


Que andamos a privar as nossas crianças de tempo para vivenciar as suas emoções, de usufruir da sua capacidade de contemplar o mundo ao seu redor e de desenvolver habilidades fundamentais de auto-regulação e organização, e de vida em sociedade.


Mas porque temos uma sociedade que teme tanto o tédio? Se o tédio é uma experiência formativa vital na vida de uma criança, e de um adulto também? E se a capacidade de lidar com o tédio é um sinal inconfundível de boa saúde mental?


Hoje em dia, temos alguns adultos que acreditam mesmo que uma criança entediada é uma criança negligenciada, pois o que acontece é que somos uma sociedade submetida à tirania do “fazer”. Sofremos de um tipo de hiperatividade, que exige que sejamos eficientes e produtivos o tempo todo. O que leva muitos pais a se sentirem culpados se não propõem atividades atraentes e sofisticadas com as quais os seus filhos possam beneficiar de algo, seja o que for, seja real ou ilusão.

Mas está na altura de perder o medo de ir contra a corrente!


Não devemos nos sentir culpados por não responder imediatamente ao: " - Mãe/pai, estou aborrecido/a.”


Estar quieto faz com que a criança enfrente a sua solidão e organize as suas emoções dentro do seu mundo pessoal. Isso permite que ela descubra progressivamente a capacidade de fazer crescer a sua imaginação e inventar histórias que mais tarde farão parte das suas brincadeiras.


E se observarmos os adultos muitas das soluções a problemas e criações surgem precisamente nesses momentos de tédio.


O tédio é portanto uma forma das crianças, bem como de alguns adultos, se entregarem à “contemplação” e descobrirem a serenidade, que de outra forma é impossível encontrar em atividade constante. É também onde as crianças encontram a sua imaginação para estimular os interesses que têm o potencial de se tornarem inspiradores.


Não tenhamos então medo de levar algum tempo a responder a esse tipo de frustração. A gratificação instantânea impede que as crianças usem as suas próprias capacidades. Portanto, esse tipo de frustração é vital para o seu desenvolvimento. Em primeiro lugar, porque a gratificação completa não existe, é impossível – todos nós temos que aprender a lidar com a frustração e às vezes até a criá-la. Por isso não tenhamos medo de frustrar a criança! É normal que os pais frustrem os seus filhos (dentro dos limites do razoável) e provoquem a sua reação!


Não devemos ter medo de fazer as crianças sentirem ou estarem frustradas/aborrecidas. O tédio e a repetitividade diária forçam as pessoas a desenvolverem a imaginação, encontrarem soluções, novos projetos e novas formas de serem elas mesmas.


O tédio fomenta a criatividade, a auto-estima e o pensamento original. O que devemos procurar é ajudar as crianças a aprender a gerir o seu tédio para que possam desenvolver independência e sentir controlo sobre a sua própria felicidade e bem-estar.


Quando uma criança diz: “Estou aborrecido” ou "Que seca!", pode ser também código para várias coisas diferentes. Ela pode estar com fome, precisa de atenção, está com curiosidade sobre o que estás a fazer ou sim, procura algo para ocupar o seu tempo.


Embora seja importante investigar sobre o que ela está realmente a reclamar, tenhamos cuidado com as nossas reações imediatas. Se largamos tudo porque ela precisa de atenção, ela não aprende a se divertir. Ou, se passamos o tempo todo a encontrar atividades toda a vez que ela pede, ela não terá a oportunidade de encontrar as suas próprias ideias. Temos de parar de ser reativos, e passar a ser proativos com as crianças sobre as suas opções.


Não é muito difícil, basta passar algum tempo e observar, ou mesmo se necessário, apenas conversar para perceber o que está por detrás do tédio.


Isto ensina-a a estar no presente e a viver com os seus sentimentos e emoções, estimula a curiosidade e a imaginação. Pois o tédio é o estado criativo que leva a novas ideias e novas brincadeiras. E sabemos que uma brincadeira de boa qualidade impulsiona o desenvolvimento das crianças e constrói a inteligência. Se a criança liga a TV ou lhe é oferecida tecnologia como um preenchimento do tédio então a centelha de imaginação está perdida, e mesmo que a seguir ela vá brincar, a brincadeira muitas vezes será apenas a reprodução do que assistiu para o poder digerir, e não fruto da sua imaginação.


E todos sabemos que a imaginação é vital para crianças de todas as idades. Estimula as crianças a explorarem o seu ambiente de novas maneiras, o que, por sua vez, leva a aprendizagens e ao desenvolvimento de habilidades. A imaginação também aprimora as habilidades sociais – afinal, a empatia é apenas a capacidade de imaginar estar no lugar do outro.


E, porque a imaginação é um recurso interno – um hábito da mente – é algo que as crianças precisam desenvolver através da prática e da repetição. Por isso, ter adultos a fornecer atividades imaginativas para as crianças nunca é tão eficaz quanto crianças inventarem suas próprias.


Deixemos aqui então sugestões de como os adultos podem aproveitar o poder do tédio para apoiar o desenvolvimento das crianças:


Desliga a tecnologia

> Todas as pesquisas mostram que assistir a TV e internet reduz a capacidade imaginativa das crianças. A tecnologia é um preenchimento de tédio que cria hábitos e pode atrapalhar o brincar. Portanto, elimina a tecnologia ou estabelece limites em torno do tempo de ecrã das crianças.


Dá-lhes papel e lápis

> Um pedaço de papel e algo para escrever/desenhar tem infinitas possibilidades para brincadeiras conjuntas ou a solo e criatividade. E é tão fácil de transportar quanto um tablet, até menos pesado!


Deixa-os ter tempo de inatividade

> Atividades estruturadas como desportos e música são ótimas para as crianças, mas não exageres. Certifica-te de que ela tem tempo para relaxar, sonhar acordada e apenas passear. As ideias precisam de espaço para serem nutridas e crescerem.


Deixe-a correr riscos saudáveis

> Se manter a criança segura significa que ela está sempre sentada na frente da tecnologia dentro de casa, o dano está na mesma a acontecer, tu simplesmente não consegue ver é os hematomas! As crianças precisam de espaço para passear e desafiarem-se a si mesmas, para o seu bem-estar físico e mental.


Oferece um ambiente em mudança

> A criança fica entediada apesar de ter milhões de brinquedos? Coloca três quartos dos brinquedos numa caixa e troca-os a cada poucas semanas. Fornece materiais básicos que possam ser usados de muitas maneiras diferentes. Tem uma caixa de material reciclável com pedaços de tecido, cordel, lãs, linhas, corda, limpadores de cachimbo, pedras, paus, etc. Passa o máximo de tempo ao ar livre no mundo natural e deixe-a sujar-se.


Comemora o "Estou aborrecido/a!"

> Diz algo como: “Isso é fantástico! O que vais fazer então?” De seguida, dá um passo para trás e dá-lhe tempo. Deixe-a viver o seu próprio tédio até que algo faça faísca.


Define desafios

> Se a criança realmente não consegue pensar em algo para fazer, define um desafio. Se ela não gostar do seu desafio, remata: “Bem, esta era a minha ideia, qual é a tua?”.


Não te sintas culpado/a

> Não faz parte do teu trabalho como pai/mãe preencher todos os momentos do teu filho. Um pouco de tédio é bom para as crianças. Portanto, usa a visão de longo prazo. Aprender a gerir-se a si mesmo, no seu tempo e os seus sentimentos são habilidades essenciais para a vida. As crianças aprendem a resolver problemas praticando a resolução de problemas. E o tédio é um grande problema para aprender a resolver!





Pesquisa:


1. O Impacto da Privação do Brincar - Este artigo de Psychology Today discute a importância crítica do brincar para o desenvolvimento saudável das crianças em múltiplas áreas: física, cognitiva, linguística, social e emocional. O estudo sugere que a privação do brincar pode levar a ansiedade e até depressão nas crianças, especialmente no contexto da pandemia de COVID-19, onde as oportunidades de brincar livremente foram drasticamente reduzidas.

2. Porque o Brincar Não Estruturado é Importante para o Desenvolvimento Infantil - Este artigo do Help Me Grow MN destaca como o brincar não estruturado, ou brincar livre, permite que as crianças explorem, criem e descubram sem regras ou diretrizes predeterminadas. Isto promove a criatividade e a imaginação, as habilidades de resolução de problemas e as habilidades sociais, sendo importantes para o desenvolvimento cognitivo.


Alguns estudos e artigos sobre a importância do tédio e o seu papel no desenvolvimento das crianças:


1. Os Benefícios do Tédio - Child Mind Institute: Este artigo sugere que o tédio pode ajudar as crianças a desenvolver habilidades valiosas, como criatividade e pensamento crítico, e oferece sugestões sobre como os pais podem criar um ambiente que encoraja a autonomia e a resolução criativa de problemas.

2. Tédio - Harvard Medicine Magazine: Discute a preocupação de especialistas de que as crianças hoje em dia não têm tempo suficiente para ficarem entediadas, uma vez que estão frequentemente sobrecarregadas de atividades estruturadas. O tédio é considerado como uma oportunidade para as crianças se envolverem em criatividade e desenvolverem recursos interno.

3. O Que Acontece Quando Protegemos as Crianças do Tédio - Greater Good Magazine: Este artigo fala sobre como a falta de imaginação em histórias escritas por crianças pode ser parcialmente um efeito do consumo de TV e sugere que o tédio é importante para o desenvolvimento da criatividade e para a capacidade de criar mudanças.

4. Crianças se Desenvolvem Melhor Quando se Permite que Fiquem Entediadas, Dizem Psicólogos - LifeHack: Explica que a falta de atividades pode estimular as crianças a se envolverem em atividades que elas não experimentariam de outra forma, como aprender um nova manualidade ou começar um projeto DIY. Também oferece conselhos sobre como os pais podem criar um ambiente propício para que as crianças lidem construtivamente com o tédio.


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