Nos últimos dias, a notícia de que uma creche em Braga planeia abrir com horários alargados até à meia-noite e meia trouxe à tona um debate essencial. Este modelo de funcionamento, apresentado como uma solução moderna para pais com horários laborais atípicos, pode parecer, à primeira vista, um avanço na conciliação entre trabalho e família. Contudo, uma análise mais profunda revela implicações preocupantes.
Será este modelo uma resposta às necessidades das famílias e das crianças, ou uma extensão das exigências de um mercado laboral cada vez mais desumanizado? Estamos a criar estruturas que respeitam a infância e promovem o bem-estar das famílias, ou a repetir erros históricos que colocam a produtividade acima de tudo?
Como explorámos no nosso artigo anterior, "O valor da creche e pré-escolar: a cultura, a economia, o poder dos pais e a saúde infantil," as creches podem responder às necessidades das crianças e das famílias quando são projetadas como espaços que respeitam o ritmo individual de cada criança e família. Mais do que locais de cuidado funcional, as creches devem ser lugares onde as crianças possam estar acompanhadas pelas suas figuras de referência principais, em ambientes que promovam o desenvolvimento saudável e o fortalecimento dos laços familiares, sempre com o foco na criança e na família, e não nas exigências do mercado.
1. A Creche: Um Espaço de Transformação, Não de Substituição
As creches são, em essência, espaços onde a infância é celebrada e valorizada. Quando bem estruturadas, proporcionam oportunidades para o desenvolvimento das crianças, ao mesmo tempo que apoiam as famílias na gestão das suas responsabilidades.
No artigo anterior, sublinhámos que uma creche de qualidade é:
Um Ambiente de Aprendizagem e Crescimento: Onde as crianças têm acesso a interações significativas, brincar e estímulos que promovem competências emocionais, sociais e cognitivas.
Um Apoio às Famílias: Oferecem tranquilidade aos pais, permitindo-lhes conciliar trabalho e vida pessoal sem comprometer o cuidado e a educação dos seus filhos.
Um Alicerce de Igualdade Social: Garantem que todas as crianças, independentemente do contexto socioeconómico, têm acesso às mesmas oportunidades de desenvolvimento.
Contudo, para cumprir este papel, as creches devem operar em sintonia com as necessidades biológicas e emocionais das crianças e respeitar os laços familiares. Horários alargados, especialmente à noite, colocam esta missão em risco, afastando-se da essência do que pode tornar as creches valiosas.
2. O Retrocesso Histórico: Uma Lógica Industrial Disfarçada de Modernidade
Para compreender plenamente o impacto de um modelo de creche com horários alargados, é essencial olhar para a história da infância. Durante a Revolução Industrial, as crianças e os pais eram vistos como engrenagens de uma máquina económica, onde a produtividade era a prioridade absoluta. As creches da época não eram locais de cuidado e desenvolvimento, mas espaços funcionais destinados a manter as crianças ocupadas enquanto os pais eram explorados nas fábricas.
Foi a luta dos trabalhadores e dos movimentos sociais que mudou este paradigma, reivindicando mais tempo em família e melhores condições de trabalho. Estas conquistas culminaram na criação de direitos laborais e, mais tarde, na adoção da Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC), que reconhece a infância como uma fase de vulnerabilidade que exige proteção especial.
A introdução de creches com horários alargados levanta a pergunta: estamos a reverter estas conquistas? Como observa a Dra. Mafalda, coautora deste artigo:"Voltamos aos primórdios da Revolução Industrial. Que tipo de sociedade estamos a construir, onde a solução para os desafios das famílias é institucionalizar ainda mais as crianças?"
3. A Convenção sobre os Direitos da Criança e a Legislação Portuguesa
A CDC, adotada pela ONU em 1989, foi um marco na proteção dos direitos das crianças. Entre os seus princípios, destaca-se o direito das crianças a serem cuidadas em ambientes que promovam o seu bem-estar e respeitem as suas necessidades emocionais e biológicas.
Portugal, como signatário da CDC, incorporou estes princípios na sua legislação, garantindo:
O Direito ao Tempo Familiar: Reconhecido na Constituição Portuguesa, que protege o papel central da família no desenvolvimento infantil.
Normas sobre o Tempo de Permanência na Creche: A legislação limita o tempo que uma criança pode permanecer na creche, assegurando que não haja institucionalização prolongada.
Direitos Laborais dos Pais: Incluem horários flexíveis, dispensas para acompanhar os filhos e licenças parentais.
Contudo, a existência de creches abertas até tarde pode enfraquecer a aplicação prática destas normas, como alerta a Dra. Mafalda:"Creches abertas 24 horas podem ser usadas como desculpa para empresas e autoridades pressionarem os pais a abdicar dos seus direitos, alegando que já há soluções para o cuidado infantil."
4. O Impacto nas Crianças: Quebra de Ritmos e Fragilidade dos Vínculos
Os primeiros anos de vida são cruciais para o desenvolvimento físico, emocional e social das crianças. É durante este período que se constroem as bases para a saúde mental e os vínculos afetivos que moldam a vida adulta. Como defendeu Emmi Pikler em Crescer Autónomo, "A criança precisa de previsibilidade e de vínculos consistentes para crescer em segurança e confiança."
Creches com horários alargados introduzem múltiplos desafios neste contexto:
Ruptura de Rotinas Naturais: Crianças que adormecem na creche e são acordadas para ir para casa enfrentam quebras de sono que podem causar irritabilidade, dificuldades de aprendizagem e problemas de regulação emocional.
Mudança Constante de Cuidadores: Num modelo de funcionamento noturno, os cuidadores terão de variar frequentemente, dificultando a formação de vínculos seguros.
Desconexão Familiar: Quando os pais passam menos tempo com os filhos, os laços afetivos tornam-se mais frágeis, o que pode impactar negativamente o desenvolvimento emocional e social da criança.
5. O Preço para os Pais: Culpa, Stress e Desvalorização da Parentalidade
Se este modelo prejudica as crianças, também coloca um peso significativo sobre os pais.
Culpa Parental: Muitos pais que recorrem a estas soluções sentem-se impotentes e culpados por não estarem presentes em momentos cruciais da vida dos filhos.
Stress e Isolamento: Este modelo reforça a desconexão entre as famílias e a sociedade, tratando o cuidado infantil como uma responsabilidade individual e solitária.
Dificuldade em Exigir Direitos: A existência de creches abertas até tarde pode ser usada para justificar a resistência das empresas a horários flexíveis, tornando ainda mais difícil para os pais conciliarem trabalho e família.
6. Que Sociedade Estamos a Construir?
A introdução de modelos como este obriga-nos a perguntar: que tipo de sociedade queremos construir? Uma que respeita a infância e a parentalidade, ou uma que as sacrifica em nome da conveniência e da produtividade?
Como argumentámos no artigo anterior, a creche deve ser um espaço que complementa, e não substitui, o papel dos pais. Ela deve apoiar as famílias, promovendo vínculos fortes e respeitando os ritmos das crianças.
7. Um Apelo à Ação: Repensar o Futuro das Creches
Se quisermos construir uma sociedade que valorize a infância e a família, precisamos de:
Reforçar a Aplicação das Normas Legais: Garantir que os direitos dos pais e das crianças são respeitados, com fiscalização rigorosa.
Criar Espaços de Apoio Comunitário: Investir em modelos que envolvam as famílias e promovam redes de solidariedade.
Humanizar as Políticas Laborais: Incentivar horários flexíveis e trabalho remoto para que os pais possam estar presentes na vida dos filhos.
8. Conclusão: A Infância Não Pode Esperar
A infância é um tempo breve e irrepetível. As escolhas que fazemos hoje terão impacto duradouro no futuro das nossas crianças e na saúde das nossas famílias.
Antes de legitimarmos modelos como o das creches com horários alargados, precisamos de refletir sobre o que estamos a priorizar enquanto sociedade. Estamos a construir um sistema que respeita os direitos humanos e valoriza a parentalidade, ou a perpetuar uma lógica de mercado que desvaloriza ambos?
A resposta a estas questões definirá não apenas o presente, mas o futuro das próximas gerações.
Agradecimento Especial
Gostaríamos de expressar a nossa profunda gratidão às colaboradoras que tornaram possível a construção e o aprofundamento das reflexões apresentadas neste e em artigos anteriores. Um agradecimento especial à Dra. Mafalda Bravo Velez, cuja colaboração neste artigo trouxe uma análise rica e inspiradora sobre o impacto dos modelos de creche na infância e nas famílias.
Reconhecemos também a valiosa contribuição de Dulce Cruz, coautora do artigo "O valor da creche e pré-escolar: a cultura, a economia, o poder dos pais e a saúde infantil," juntamente com a Joana Silva, que nos ajudaram a iluminar o debate sobre o papel essencial das creches na sociedade.
É graças a vozes comprometidas com uma visão humanista e transformadora da infância que podemos continuar a criar discussões significativas e soluções respeitadoras para crianças e famílias.
Referências Bibliográficas e Jurídicas:
1. Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC)
Organização das Nações Unidas (ONU). Convenção sobre os Direitos da Criança, 1989.
Disponível em: UNICEF - CDC
2. Constituição da República Portuguesa
Disponível em: DRE - Constituição uda República Portuguesa
3. Código do Trabalho Português
Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro (última atualização em 2023).
Disponível em: DRE - Código do Trabalho
4. A Portaria n.º 262/2011, de 31 de agosto, regula as condições de instalação e funcionamento das creches em Portugal. Este diploma aplica-se a instituições particulares de solidariedade social (IPSS), empresas, e outras entidades que fornecem este tipo de serviços, incluindo creches com fins lucrativos.
5. Leituras Especializadas
Maté, G. & Neufeld, G. (2008). Hold On to Your Kids: Why Parents Need to Matter More Than Peers. Ballantine Books.
Título em português: O Seu Filho Precisa de Si: Porque é que os Pais Devem Importar Mais do que os Colegas
Editora: Lua de Papel
Ano de publicação: 2010
ISBN: 978-989-23-0910-0
Pikler, E. & Tardos, A. (2022). Crescer Autónomo.
Autores: Emmi Pikler e Anna Tardos
Editora: APEI (Associação de Profissionais de Educação de Infância)
Ano de Publicação: 2022
ISBN: 978-972-99984-2-2
Robinson, K. (2015). Creative Schools: The Grassroots Revolution That’s Transforming Education. Viking.
Título em português: Escolas Criativas: Uma Revolução na Educação
Editora: Porto Editora
Ano de publicação: 2016
ISBN: 978-972-0-04700-0
Steiner, R. (1919). Education as a Force for Social Change. Rudolf Steiner Press.
Título em português: A Educação como Força para a Mudança Social
Editora: Edições Antroposóficas
Ano de publicação: 2012
ISBN: 978-989-20-2345-0
5. Relatórios e Estudos Complementares
Impacto da Creche para a Interação Mãe-Criança e para o Desenvolvimento Infantil:
Disponível em: SciELO - Desenvolvimento Infantil
Boas Práticas de Conciliação entre Vida Profissional e Vida Familiar:
Disponível em: CITE - Boas Práticas
Análise da Influência do Momento do Ingresso em Creches no Desenvolvimento Infantil:
Disponível em: SciELO - Ingresso em Creches
6. Discursos e Citações Complementares
Ken Robinson. (2006). Do Schools Kill Creativity? [TED Talk].
Disponível em: TED Talks
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