Já alguma vez te perguntaste porque é que algumas crianças se tornam adultos confiantes, capazes de argumentar e defender-se neste mundo complexo, enquanto outras não conseguem fazer ouvir a sua voz? A resposta a esta pergunta começa no primeiro dia de vida de uma criança e está profundamente ligada à confiança que tu, os pais e a sociedade têm nas suas capacidades desde o início.
A Importância do Sentimento de Competência
O sentimento de competência é como uma semente plantada desde o nascimento. É acreditar desde o início que a criança é capaz, por si mesma, de realizar tarefas essenciais ao seu desenvolvimento, superar desafios e aprender com a experiência. Este não é um sentimento que surge magicamente na idade adulta; ele é cultivado e nutrido desde os primeiros anos de vida.
O Começo: Movimento Livre e Descoberta
Desde os primeiros dias, as crianças têm uma curiosidade inata e uma vontade de explorar o mundo ao seu redor. Quando permites que os bebés se movam livremente, descubram por si mesmos e explorem com segurança, estás a contribuir, muitas vezes sem o saber, para o desenvolvimento deste sentimento de competência. Não interferir com o movimento livre é o primeiro passo para construir confiança. Esta visão está profundamente ligada à visão da Antroposofia; Rudolf Steiner, um defensor de que o sentimento de competência está intrinsecamente associado à vontade e ao desenvolvimento da criança, e que essa jornada começa com o movimento livre.
A Importância da Vontade na Competência
Na visão da Pedagogia Waldorf, segundo a Antroposofia, a vontade é uma das três forças que impulsionam o desenvolvimento humano, juntamente com o pensamento e o sentimento. A vontade é a força que nos capacita a agir e a realizar tarefas. É através da vontade que as crianças desenvolvem a capacidade de dominar desafios e de se sentirem competentes nas suas ações.
Respeitar o Ritmo Individual
Cada criança é única e desenvolve-se no seu próprio ritmo. Respeitar esse ritmo individual é então essencial. Pressionar uma criança a atingir marcos de desenvolvimento de acordo com um cronograma predefinido não só não faz sentido, como pode minar a sua confiança. Quando respeitas o ritmo da criança, estás a transmitir a mensagem de que ela é valorizada por quem é, não apenas pelas suas realizações.
O Papel dos Pais e da Sociedade
Tu, enquanto pai, mãe ou cuidador principal da criança, desempenhas um papel fundamental na construção do sentimento de competência dos teus filhos. Ao apoiar e encorajar positivamente os seus esforços, ao criar um ambiente seguro para explorar coisas novas e aprender com os erros, desempenhas também um papel crucial como modelo. Se tu mesmo demonstrares a confiança e a resiliência que desejas ver nas tuas crianças.
A Infância: O Solo Fértil da Competência
A infância é, por isso, o solo fértil onde o sentimento de competência começa a florescer. As crianças brincam, exploram, fazem descobertas e resolvem problemas. Tudo isso contribui para o desenvolvimento das suas habilidades sociais, emocionais e cognitivas.
Adultos Confiantes: Resultado das Crianças Competentes
Crianças que crescem com um sentimento de competência tornam-se então adultos confiantes. Elas não acreditam apenas nas suas próprias habilidades, mas têm também a capacidade de argumentar, defender as suas opiniões e enfrentar desafios com coragem. Elas aprenderam desde cedo que é normal cometer erros e que aprender é uma jornada contínua.
A jornada de desenvolvimento da criança para o adulto é uma progressão natural e contínua. Começa com o respeito pelo movimento livre, do ritmo individual e pela crença nas capacidades da criança desde o início. São as nossas ações como pais e como sociedade que moldam o futuro dessas crianças.
Se investirmos na construção de crianças competentes, estamos a moldar adultos confiantes e capazes, prontos para enfrentar os desafios que a vida lhes reserva. Criança competente, adulto confiante - esta é a jornada que todos desejamos para as nossas crianças.
A Herança do Passado: Como o Modelo Educacional Industrial e a Psicologia Comportamentalista Afetaram o Sentimento de Competência
Como mencionado, a sociedade também desempenha um papel fundamental na formação do sentimento de competência nas nossas crianças. E, para compreender completamente os desafios que enfrentamos hoje, é crucial examinar como o nosso sistema educativo, influenciado pelo modelo da era industrial, e a psicologia comportamentalista moldaram a maneira como vemos o desenvolvimento infantil.
O Modelo Educacional Industrial, que remonta ao século XIX, foi projetado para atender às necessidades de uma sociedade em rápida industrialização. Baseava-se em princípios de eficiência, uniformidade e padronização. As crianças foram agrupadas por idade, e o foco passou a ser a transmissão de informações e habilidades específicas. Sir Ken Robinson, nas suas obras, sempre argumentou que debaixo da superfície este é um modelo rígido que ainda persiste na maioria dos sistemas educativos em todo o mundo. Ele relembrou continuamente como este modelo enfatiza a conformidade, a uniformidade e muitas vezes negligencia a individualidade e as habilidades não académicas das crianças. O que pode levar as crianças a questionarem a sua competência quando não se encaixam no molde predefinido.
"Devemos passar de um modelo essencialmente industrial de educação, um modelo de fabricação, que se baseia na linearidade, conformidade e agrupamento de pessoas. Devemos mudar para um modelo baseado mais em princípios da agricultura. Devemos reconhecer que o florescimento humano não é um processo mecânico; é um processo orgânico. E não podes prever o resultado do desenvolvimento humano. Tudo o que podes fazer, como um agricultor, é criar as condições sob as quais eles começarão a florescer." - Ken Robinson
A Psicologia Comportamentalista, que ganhou destaque no século XX, colocou o foco no condicionamento e na modelagem do comportamento humano. Embora tenha contribuído significativamente para a compreensão do comportamento humano, também influenciou a maneira como as crianças passaram a ser vistas e educadas. A abordagem comportamentalista muitas vezes retratava a criança como uma "tábua rasa", pronta a ser moldada pelo adulto. Isso às vezes levou a um ênfase na conformidade e na obediência, em vez de promover a independência e o pensamento crítico. As crianças sobre este tipo de disciplina passaram a sentir que a sua competência estava vinculada à capacidade de seguir regras, em vez de explorar o seu próprio potencial. Grande parte de nós é filho desta visão da infância e da educação.
"Os homens são moldados, não nascem... Dê-me um bebé, e eu o farei trepar e usar as suas mãos para construir edifícios de pedra ou madeira... Eu o farei tornar-se um ladrão, um pistoleiro ou um toxicodependente. As possibilidades de o moldar em qualquer direção são quase infinitas." - John B. Watson (considerado o pai do Comportamentalismo)
O Contexto Histórico em Portugal
Em Portugal, como em muitos outros países, houve momentos históricos que deixaram uma marca na forma como as gerações subsequentes foram criadas. Durante os anos de ditadura, a atmosfera de repressão e medo afetou inquestionavelmente a forma como as crianças eram educadas e como os pais as orientavam. O medo de falar e expressar opiniões contribuiu para moldar a forma como as crianças viam a competência e a autoridade. Durante o Estado Novo, a educação era vista como uma ferramenta de controle social e política, e o sistema educativo foi moldado para atender aos objetivos do regime.
O Prof. Carlos Neto, renomado especialista em desenvolvimento infantil em Portugal, reflete e faz referência a como estas influências históricas tiveram um impacto duradouro na educação das crianças em Portugal. Ele destaca a importância de reconhecer essas influências para procurarmos uma abordagem mais holística e centrada na criança para promover o desenvolvimento saudável.
Mudar o Paradigma: Apoiar o Desenvolvimento do Sentimento de Competência
É fundamental reconhecer como o passado moldou a nossa visão da competência infantil. No entanto, também é essencial avançar em direção a um paradigma mais centrado na criança, onde valorizamos a individualidade, a criatividade e o desenvolvimento natural.
A Contradição entre a Visão Promovida e a Realidade do Sistema Educacional
Hoje, é comum ouvires tanto os pais quanto os sistemas escolares enfatizarem a formação de adultos assertivos, empreendedores, competentes e argumentativos. Essa visão é, sem dúvida, louvável e reflete um desejo compartilhado de preparar as crianças para o sucesso na vida adulta. No entanto, há uma contradição fundamental que não podemos ignorar: como podemos acreditar que esse será o resultado quando o sistema educativo e a visão disciplinar subjacente continuam centrados no moldar, reprimir, controlar e no que muitas vezes é confundido como "respeito", mas que, na realidade, muitas vezes se traduz em medo e autoritarismo?
A Dissonância Entre a Visão e a Prática
Por um lado, estamos a promover a ideia de que queremos crianças independentes, capazes de pensar criticamente, tomar iniciativa e serem resilientes diante dos desafios. Queremos que sejam capazes de articular as suas ideias e defender os seus pontos de vista de forma competente e madura. No entanto, quando observamos de perto o sistema educativo e abordagens disciplinares tradicionais, vemos uma desconexão notável.
O Paradigma Disciplinar Tradicional
O paradigma disciplinar tradicional continua a basear-se na ideia de controle e conformidade. As crianças continuam frequentemente a ser ensinadas a obedecer regras rígidas, seguir instruções sem questionar e, em alguns casos, até mesmo a reprimir as suas vozes e opiniões. A disciplina muitas vezes traduz-se em punições, restrições e medidas coercivas destinadas a manter as crianças "na linha". No entanto, essa abordagem levanta uma pergunta crucial: como podemos esperar que crianças criadas neste ambiente desenvolvam as habilidades de assertividade, empreendedorismo e argumentação que dizemos querer promover?
O Medo e a Autonomia
O problema é que, quando a disciplina é baseada no medo e na obediência cega, as crianças aprendem a evitar riscos, a evitar a expressão das suas opiniões e a buscar a aprovação constante da autoridade e dos pares. Esta mentalidade mina a capacidade de tomar iniciativa, de serem independentes e de desenvolver habilidades de pensamento crítico. Em vez de aprenderem a argumentar de maneira construtiva, podem aprender a conformar-se ou a evitar o confronto a todo custo.
O Caminho a Seguir
Se realmente desejamos criar adultos assertivos, empreendedores, competentes e argumentativos, precisamos de uma transformação total das nossas abordagens disciplinares e educativas. Está na hora de substituir o medo e a necessidade de controle pelo respeito e confiança genuína, que permita a expressão autêntica das crianças. Devemos encorajar o pensamento crítico, a autonomia e a tomada de decisões desde cedo. E devemos reconhecer que, para promover adultos competentes, é essencial que as crianças aprendam a lidar com desafios e a expressar as suas opiniões de maneira respeitosa e construtiva.
Está na hora de alinhar as nossas intenções com as nossas ações, para o benefício das nossas crianças e da sociedade como um todo.
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BIBLIOGRAFIA:
1. Rudolf Steiner
- Steiner, Rudolf. "Educação da Criança Segundo a Ciência Espiritual." Editora Antroposófica, 2012.
2. Carlos Neto
- Neto, Carlos. "Libertem as Crianças – A urgência de brincar e ser ativo." Contraponto Editores, 2020.
3. Ken Robinson e Lou Aronica
- Robinson, Ken, e Aronica, Lou. "Escolas Criativas: A revolução que está transformando a educação." Editora Penso , 2018.
4. John Watson, Saulo de Freitas Araujo, Bruno Angelo Strapasson
- Watson, John B.; Araujo, Saulo de Freitas; Strapasson, Bruno Angelo. "O behaviorismo clássico." Sinopsys Editora.
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