ou Porque não temos ainda hoje respostas sociais de cuidados adequados a todas as etapas da primeira infância.
O período entre 1850 e 1950 representa a marca d'água da infância.
Várias tentativas bem-sucedidas foram feitas durante esses anos para colocar todas as crianças na escola e fora das fábricas, a vestir as suas próprias roupas, a ter os seus próprios móveis, a sua própria literatura, os seus próprios jogos, o seu próprio mundo social. Numa centena de leis, as crianças foram classificadas como qualitativamente diferentes dos adultos; numa centena de culturas, foi-lhe atribuido um estatuto preferencial e foi-lhe oferecida protecção contra os caprichos da vida adulta. Este é o período durante o qual o estereótipo da família moderna foi criado, é o período em que os pais desenvolveram os mecanismos psíquicos que permitem uma total empatia, ternura e responsabilidade para com as suas crianças, segundo deMause.
Ora vejamos...
À medida que cada nação tentava compreendê-la e integrá-la à sua cultura, a Infância assumia um aspecto único nos ambientes económicos, religiosos e intelectuais em que surgia. Nalguns casos, foi enriquecida; noutras, negligenciada; em alguns, degradada. No entanto, em nenhum momento ela desapareceu, embora por vezes tenha estado suficiente perto de acontecer...
Por exemplo, a Revolução Industrial, desenvolvida no século XVIII, foi uma inimiga constante e formidável da infância.
Em Inglaterra, sendo este país o seu berço, a alfabetização, a escolaridade e a infância desenvolveram-se rapidamente até o final do século XVII. Mas com o crescimento das grandes cidades industriais e a necessidade de operários fabris e trabalhadores das minas aumentar, a natureza especial das crianças foi substituída pela sua utilidade como fonte de mão de obra barata.
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“Um dos efeitos do capitalismo industrial”, escreve Lawrence Stone, “foi ... acrescentar apoio aos aspectos penais e disciplinares da escola, que eram vistos por alguns como um sistema para quebrar a vontade e condicionar a criança ao trabalho rotineiro nas fábricas." Esta era a verdade, mas isto se a criança tivesse a sorte de frequentar uma escola. Pois a sociedade inglesa foi particularmente feroz durante todo o século XVIII e parte do século XIX na forma como tratou os filhos das classes mais pobres, a principal fonte de mão-de-obra, para abastecer a máquina industrial inglesa.
Um pouco antes, em 1814, fora introduzida uma legislação que tornava o roubo de uma criança uma ofensa condenável pela primeira vez na história da Inglaterra. Embora fosse contra a lei despir uma criança e roubar as suas roupas, não havia nenhuma retribuição legal pelo acto de realmente roubar uma criança ou por vendê-la a mendigos. Mas a lei não exibia a mesma relutância em exigir penalidades para crimes cometidos por crianças. Ainda em 1780, as crianças podiam ser condenadas por qualquer um dos mais de duzentos crimes para os quais a pena era enforcamento.
Quantos volumes foram escritos, incluindo vários de Charles Dickens, que falam do reinado de terror infligido aos filhos dos pobres desde o século XVIII até meados do século XIX na Inglaterra? As casas de trabalho, as instituições penais, as fábricas têxteis, as minas , o analfabetismo, a falta de escolas....
Escolhemos a expressão “reinado do terror” com cuidado, porque é importante dizer que assim como o Reinado do Terror em França não destruiu e não pôde destruir a ideia de democracia política, o tratamento brutal dispensado às crianças da classe baixa também não destruiu e não conseguiria destruir a ideia de infância. Felizmente para o futuro, a ideia era mais forte que as crianças que nunca beneficiaram dela. Houve várias razões pelas quais a infância sobreviveu à avareza da Inglaterra industrializada, e uma delas é que as classes média e alta mantiveram a ideia viva, a nutriram e a ampliaram-na.
A partir da década de 1830, foram aprovadas as leis na Europa Ocidental, que gradualmente removeram as crianças da força de trabalho e introduziu a escolaridade obrigatória. O Reino Unido esteve de novo entre os primeiros países a criar uma legislação especifica que abordava as práticas de trabalho das crianças e que tentava limitar as suas horas de trabalho. Na Inglaterra e no País de Gales, em 1870, surgiu A Lei da Educação que tornou a frequência escolar obrigatória para todas as crianças entre os 5 e os 13 anos. A introdução da escolaridade obrigatória e a noção de que as crianças não deveriam mais ter que trabalhar resultou
num alongamento do período da infância.
Os Escoceses, no final do século XVIII desenvolveram o maior sistema de ensino primário e talvez o melhor sistema de ensino secundário da Europa.
E a grande questão é que a invenção da infância foi uma ideia que ultrapassou todas as fronteiras nacionais, às vezes sendo interrompida e desencorajada, mas sempre continuando seu caminho. E embora as condições locais afectassem a sua forma e progresso, nada poderia fazer com que ele desaparecesse.
Em França, por exemplo, surgiu a oposição à alfabetização social e à educação não provinda de um capitalismo industrial desumano, mas dos Jesuítas que temiam a “protestantização” da sua religião e cultura. Mas, em meados do século XIX, a França alcançou a Inglaterra na sua taxa de alfabetização, na escolaridade dos jovens e, portanto, na sua consideração pelo significado da infância. O movimento europeu em direção a uma concepção humana da infância deveu-se, em parte, a um sentido elevado de responsabilidade do governo pelo bem-estar das crianças.
É importante tomar nota deste facto porque nos últimos anos esta ideia tem sido atacada, e, na nossa opinião, com razão, há uma excessiva intervenção governamental na vida das famílias.
É bem sabido que os pais tratavam regularmente os seus filhos não apenas como propriedade sua para fazer o que desejassem, mas também como bens móveis cujo bem-estar era dispensável no interesse da sobrevivência da família. No século XVIII, a ideia de que o Estado tinha o direito de agir como protector das crianças era nova e radical. No entanto, gradualmente a autoridade total dos pais foi humanamente modificada, de modo a que todas as classes sociais fossem forçadas em parceria com o governo de assumir a responsabilidade pela educação dos filhos.
A razão pela qual o governo começou a assumir tal responsabilidade pode ser explicada pelas várias forças existentes, entre as quais estava um espírito europeu de reforma e aprendizagem. Devemos lembrar-vos que o século XVIII foi o século de Goethe, de Voltaire, de Diderot, de Kant, de David Hume, de Edward Gibbon. Foi também o século de Locke e Rousseau. Podemos até dizer que, no que diz respeito à infância, em França os Jesuítas não eram adversários à altura para Rousseau, como em Inglaterra a máquina industrial não resistia às idéias de John Locke.
Com isso queremos dizer que o clima intelectual do século XVIII - o Iluminismo, como é chamado - ajudou a nutrir e difundir a ideia da infância.
Locke, por exemplo, exerceu enorme influência no crescimento da infância por meio do seu notável livro Some Thoughts Concerning Education, publicado em 1693. Como Erasmus antes dele, Locke viu as ligações entre a aprendizagem enciclopédica e a infância e propôs uma educação que, ao mesmo tempo que assumia a criança como um recurso precioso, exigisse uma atenção rigorosa ao desenvolvimento intelectual da criança e à sua capacidade de auto-controle. Mesmo as visões esclarecidas de Locke sobre o cuidar do crescimento físico tinham como propósito o desenvolvimento dos poderes de raciocínio de uma criança. Uma criança deve ter um corpo vigoroso, escreveu ele, "para que seja capaz de obedecer e executar as ordens da mente ". E, Locke também percebeu a importância da vergonha como meio de manter a distinção entre infância e idade adulta.
Mas, acima de tudo, Locke promoveu a teoria da infância através da sua conhecida ideia de que no nascimento a mente é uma tábua em branco, uma tabula rasa. Assim, recaiu sobre os pais e professores (e, mais tarde, sobre o governo) uma grande responsabilidade pelo que eventualmente seria escrito na mente. Uma criança ignorante, sem vergonha e indisciplinada representava o fracasso dos adultos, não da criança.
Como as idéias de Freud ( de quem já falaremos adiante) sobre a repressão psíquica duzentos anos depois, a tabula rasa de Locke criou um sentimento de culpa nos pais em relação ao desenvolvimento dos seus filhos e forneceu as bases psicológicas e epistemológicas para tornar a criação cuidadosa dos filhos uma prioridade nacional, pelo menos entre as classes mais altas.
Uma segunda grande influência intelectual do século XVIII sobre a ideia de infância foi, é claro, Rousseau. Com a sua insistência de que a criança é importante em si mesma, não apenas como um meio para um fim. Nisso ele diferia fortemente de Locke, que via a criança em todos os pontos como um cidadão em potencial e talvez como um comerciante. A ideia de Rousseau não era inteiramente original, pois na época em que Rousseau escrevia, já existia em França uma certa reverência pelo encanto e valor da infância.
Os escritos de Rousseau despertaram uma curiosidade sobre a natureza da infância que persiste até os dias actuais.
Podemos dizer com justiça que Friedrich Froebel, Johann Pestalozzi, Maria Montessori, Rudolf Steiner, Jean Piaget, Arnold Gesell e A. S. Neill, são todos herdeiros intelectuais de Rousseau. (Froebel e Pestalozzi proclamaram explicitamente a sua dívida para com ele.) Certamente, o seu trabalho partia do pressuposto de que a psicologia da infância é fundamentalmente diferente da dos adultos e deve ser valorizada por si mesma.
A segunda ideia de Rousseau era que a vida intelectual e emocional de uma criança é importante, não porque devemos conhecê-la para ensinar e educar os nossos filhos, mas porque a infância é a fase da vida em que o homem mais se aproxima do “estado de natureza.
A obsessão de Rousseau por um estado de natural e o seu correspondente desprezo pelos "valores civilizados" chamaram a atenção do mundo, como ninguém fizera antes dele, as virtudes infantis da espontaneidade, pureza, força e alegria, todas as quais passaram a ser vistas como recursos para nutrir e comemorar.
E assim, à medida que a infância avançava para os séculos XIX e XX, e cruzava o Atlântico para o Novo Mundo, havia duas correntes intelectuais das quais a ideia era composta. Podemos chamá-los de concepção lockeana ou protestante da infância e concepção rousseauniana ou romântica.
Na visão protestante, a criança é uma pessoa inacabada que, por meio da alfabetização, educação, razão, auto-controle e vergonha, pode ser transformada num adulto civilizado. Na visão romântica, a criança inacabada não é o problema, mas sim o adulto deformado é que é o problema. A criança possui como seu direito de nascimento as capacidades de franqueza, compreensão, curiosidade e espontaneidade que são amortecidas pela alfabetização, educação, razão, auto-controle e vergonha.
Para Locke e a maioria dos pensadores do século XVIII, o analfabetismo e a infância eram inseparáveis, sendo a idade adulta definida como a competência linguística total. Por outro lado, Rousseau escreveu em Emile que “as plantas são melhoradas pelo cultivo e o homem pela educação”. Aqui está a criança como uma planta selvagem, que dificilmente pode ser melhorada com a aprendizagem enciclopédica. "O seu crescimento é orgânico e natural; a infância requer apenas que não seja sufocada pelos derramamentos doentios da civilização".
Locke queria que a educação resultasse num livro rico, variado e abundante; Rousseau queria que a educação resultasse numa flor saudável. É importante ter isso em mente, pois a preocupação com o futuro está cada vez mais ausente nas metáforas da infância dos dias de hoje. Nem Locke nem Rousseau jamais duvidaram que a infância pudesse existir sem a orientação futura dos adultos.
Até aos nossos dias, na América e em toda a Europa, as suposições de Locke refletem-se não apenas nas escolas, mas na maioria das instituições voltadas para as crianças. Mas o que parece ter acontecido é que o grau de certeza sobre a natureza da infância começou a ser questionada. Em geral, a visão lockeana de que as crianças eram adultos inacabados e que necessitavam ser civilizados permaneceu intacta, mas surgiram questões sobre como proceder para não prejudicar as virtudes da infância descritas por Rousseau e o movimento romântico.
Em 1890, por exemplo, foi criada a Sociedade para o Estudo da Natureza Infantil e, entre as questões abordadas em suas reuniões, estavam as seguintes:
A obediência implícita deveria ser imposta às crianças?
Como pode a verdadeira ideia de propriedade ser transmitida à criança?
Quanta autoridade deveriam ter as crianças mais velhas?
A imaginação de uma criança é atrofiada se for forçada a aderir estritamente à verdade?
No final do século XIX, o cenário estava montado para dois homens cujo trabalho acabou por estabelecer o tom do discurso a ser usado em todas as discussões sobre a infância no século actual. É importante notar que o livro mais influente de cada um destes homens foi publicado em 1899, e cada um, à sua maneira, levou pessoas pensantes a fazer a pergunta: Como podemos equilibrar as reivindicações da civilização com as reivindicações da natureza de uma criança? Referimo-nos, ao The Interpretation of Dreams de Sigmund Freud e The School and Society de John Dewey.
Juntos, eles representam uma síntese e um somatório da jornada da infância do século XVI ao XX.
De dentro da alçada da ciência, Freud afirmou, em primeiro lugar, que há uma estrutura inegável, bem como um conteúdo especial, na mente da criança - por exemplo, que as crianças possuem sexualidade e estão imbuídas de complexos e impulsos psíquicos instintivos. Ele também afirmou que nos seus esforços para atingir a maturidade adulta, as crianças devem superar, ultrapassar e sublimar suas paixões instintivas. Freud, portanto, refuta Locke e confirma Rousseau: a mente não é uma tabula rasa; a mente da criança está aproxima de um "estado natural/selvagem"; até certo ponto, as exigências da natureza devem ser levadas em consideração, de contrário ocorrerão disfunções permanentes na personalidade. Mas, ao mesmo tempo, Freud refuta Rousseau e confirma Locke: as primeiras interações entre a criança e os pais são decisivas para determinar o tipo de adulto que a criança será; por meio da razão, as paixões da mente podem ser controladas; a civilização será totalmente impossível sem repressão e sublimação.
Dewey argumentava que as necessidades psíquicas da criança devem ser tratadas em termos do que a criança é, não do que ela será. Em casa e na escola, os adultos devem perguntar:
O que é que a criança precisa agora?
Que problemas ele ou ela devem resolver agora?
Só assim, acreditava Dewey, a criança se tornaria num participante construtivo da vida social da comunidade.
Freud e Dewey cristalizaram o paradigma básico da infância que vinha a ser formado desde a invenção da imprensa: a criança como aluno ou aluna cujo Eu e individualidade devem ser preservados por meio do cuidar, cuja capacidade de auto-controle, gratificação adiada e pensamento lógico devem ser ampliados, e cujo conhecimento da vida deve estar sob o controle dos adultos. No entanto, ao mesmo tempo, a criança é entendida como tendo as suas próprias regras de desenvolvimento e um encanto, curiosidade e exuberância que não só devem ser controlados - mas, na verdade são asfixiados - sob o risco de não alcançarem a maturidade adulta.
Como nos diz Postman, todas as pesquisas da Psicologia sobre a infância feitas neste século - por exemplo, por Jean Piaget, Harry Stack Sullivan, Karen Horney, Jerome Bruner ou Lawrence Kohlberg - foram meros comentários sobre o paradigma básico da infância. "Ninguém contestou que as crianças são diferentes dos adultos. Ninguém contestou que as crianças devem atingir a idade adulta. Ninguém contestou que a responsabilidade pelo crescimento das crianças cabe aos adultos. Na verdade, ninguém contestou que, em certo sentido, os adultos dão o seu melhor , e são o mais civilizados possível, quando cuidam dos filhos. Pois devemos lembrar-nos que o paradigma moderno da infância é também o paradigma moderno da idade adulta."
Na viragem do século, a infância passou a ser considerada um direito de nascença de todas as pessoas, um ideal que transcendia classes sociais e económicas. Inevitavelmente, a infância passou a ser definida como uma categoria biológica, não um produto da cultura.
Assim, é de uma ironia fascinante que, neste mesmo período, o ambiente simbólico que deu vida à infância tenha começado a ser desmontado, lenta e discretamente. Sem querermos contestar esta sabedoria, gostaríamos de sugerir que a viagem de Morse teve consequências muito mais sérias para a cultura mundial do que a de Darwin.
Darwin apresentou ideias que influenciaram amplamente estudiosos e teólogos. Pode-se duvidar que a sua teoria tenha tido muito efeito nos assuntos práticos das pessoas ou que tenha alterado muito as suas instituições e hábitos mentais. Neste momento, enquanto nos lêem, milhões de pessoas estão empenhadas em contrariar as suposições incorporadas no pensamento darwiniano, o que quer dizer simplesmente, que se pode viver sem acreditar na teoria da evolução. Mas todos enfrentamos a influência da comunicação elétrica...
( a continuar...)
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