top of page
Foto do escritorSara & Felipa Educa_são

A Infância e a Criança: conceitos recentes? ( Parte 1)

Atualizado: 28 de set. de 2021

ou Porque não temos ainda hoje respostas sociais de cuidados adequados a todas as etapas da primeira Infância?


" As crianças são as mensagens vivas que enviamos à época que não veremos. Partindo de um ponto de vista biológico, é inconcebível que qualquer cultura se esqueça que precisa de se reproduzir. Mas é bem possível que uma cultura exista sem um ideia social de criança. Ao contrário da infância, a criança é um artefacto social, não uma categoria biológica. Os nossos genes não contêm instruções claras sobre quem é e quem não é uma criança, e as leis de sobrevivência não exigem que seja feita uma distinção entre o mundo de um adulto e o mundo de uma criança. Na verdade, se quisermos pegar na palavra criança, como significante de uma classe especial de pessoas entre as idades de sete e, digamos, dezessete, que exigem formas especiais de nutrição e proteção, e considerada qualitativamente diferente da dos adultos, então existem amplas evidências de que as crianças existem há menos de quatrocentos anos."


Como nos diz Postman, a Criança é um artefacto social, não uma categoria biológica. Pode-vos parecer estranho mas, é bem verdade... O conceito de infância difere mesmo dentro da mesma sociedade, dependendo de outros factores sociais, como por exemplo, o género e a classe social. Nem todas as sociedades do mundo têm o mesmo conceito de infância, o que prova que a infância não é universal, nem natural.

Então vamos começar pelo principio: O que é uma criança?


" Não pode haver revelação mais veemente da alma de uma sociedade do que a maneira como ela trata os seus filhos." - Nelson Mandela

A construção social da infância é baseada em concepções variadas entre diferentes culturas, sociedades e em diferentes períodos da história.


Partindo de um significado genérico, no geral, todos "sabem" o que é uma criança, já que todos já fomos criança e vivemos a infância.


Todo mundo tem uma infância na bagagem, com as memórias, os conhecimentos, as atitudes, os sentidos e mentalidades cognitivas que isso envolve ... alguns anseiam pela infância, alguns estão presos a ela, alguns procuram se livrar dela. Qualquer que seja o caso, não se escapa do facto de que tivemos uma infância


Visto deste prisma Criança e a Infância não são uma ideia abstrata. No entanto, esta familiaridade com o conceito é, muitas vezes, um obstáculo quando queremos entender o que é uma criança.


Para a maioria das pessoas, uma criança é simplesmente uma questão de tamanho físico e desenvolvimento. No entanto, a criança e a infância são muito mais do que isso. Existem muitas características da criança e da infância que não podem ser vistas. Na sua forma mais simples, a infância é considerada a primeira fase da vida humana em todas as culturas e em todos sociedades.


Frequentemente, a criança é vista como um ser que deve ser aprimorado para atingir o ponto de perfeição - a idade adulta. É por isso que mesmo nas sociedades industrializadas contemporâneas, uma criança surge como uma categoria com uma posição social que deve estar associada a um plano de cuidado e educação.

James, Jenks e Prout também concordam que a criança está relacionada com a ideia de imperfeição e a idade adulta é vista como a meta final para transformar a dependência em independência e a imperfeição em perfeição.


Woodhead afirma que “da perspectiva construtivista social, o desenvolvimentalismo é um discurso dentro do qual as crianças são descritas como ainda não adultas, como em processo de 'tornar-se' ao invés de uma pessoa por seu próprio direito .” A criança é considerada como aquela que carece de alguma coisa.


Então em comparação aos adultos, as crianças são vistas como aquelas que são fisicamente mais fracas, menos desenvolvidas, e pesam menos que os adultos. As crianças são consideradas aquelas que precisam ultrapassar estágios de desenvolvimento e as características sexuais secundárias para ser chamadas como adultos. As crianças tendem a ter menos habilidades cognitivas, intelectuais, menos conhecimento, menos capacidade para o raciocínio. As crianças são consideradas aquelas que têm menos maturidade emocional e menos habilidades sociais. São consideradas como aquelas com menos competência em termos de habilidades para a vida e menos expressivas. As crianças são percebidas como numa relação posicional de impotência em relação aos adultos. Através de tais características e atributos distintivos dos adultos, tanto como em aspectos biológicos e sociais, as crianças são definidas como crianças e os adultos são deliberadamente denominados como "crescidos".


E isto significa que não falta qualquer coisa às crianças mas que os adultos não entendam e não reconheçam a práxis infantil. Os adultos veem a competência como uma faculdade definida em permanente relação com a práxis dos adultos.


A idade é usada como outro critério chave para definir uma “criança”. A idade é amplamente utilizada para fins de definição em muitas sociedades contemporâneas, particularmente nas sociedades ocidentais. De acordo com a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, qualquer ser humano abaixo da idade de dezoito anos é considerado uma criança.


Além disso, existem algumas outras categorias, por exemplo, bebés, criança pequena, jovens, adolescentes, pré-adolescentes, pubescente.... Todas essas categorias são englobados pela palavra "criança."

Curioso é notar aqui, como nós em português só temos as palavras bebé e criança ou a junção criança pequena, enquanto noutras línguas, como o inglês ou holandês ( entre outras), temos os termos toddler ou peuter que se refere à criança pequena dos 12 aos 36 meses, uma fase fundamental da criança mas que em muitas línguas europeias ainda nem tem categoria própria!


Embora as crianças compartilhem um curso comum de etapas motoras e de desenvolvimento ao longo do tempo, considerar a idade como factor de definição para marcar o que uma criança é pode ser problemático por várias razões. Como o exemplo mais lógico: nem todas as crianças adquirem o mesmo desenvolvimento físico, social e psicológico na mesma idade!

Estes estágios de desenvolvimento não dependem da idade, mas de outros factores, que podem ser físicos, sociais e/ou contextos culturais. E no entanto, a idade ainda é utilizada na sociedade moderna para definir uma criança. Sendo o maior exemplo: a idade é o elemento fundamental para agrupar as crianças em classes diferentes de escolaridade!


As crianças são avaliadas em todos os aspectos, incluindo na escola pelas actividades e estudos em termos da sua faixa etária. O que nos leva a questionar: o que leva alguém a ser avaliado em termos de idade? Parece-nos que estamos a avaliar a criança pelo que é e pelo que ainda não é.

Seguindo o argumento que na história a infância é um fenómeno recente e, que foi portanto, uma construção moderna que deu à infância um espaço especial na sociedade. Na verdade, de acordo com alguns historiadores, a noção de infância como uma fase distinta da vida não se desenvolveu até o século XVI. Ora sigam-nos...


Relativamente às atitudes em relação às crianças na Antiguidade, sabemos muito pouco. Os gregos, por exemplo, deram pouca atenção à infância como uma categoria de idade especial, e o velho ditado de que os gregos tinham uma palavra para tudo não se aplica ao conceito de criança. As suas palavras para crianças e jovens são, no mínimo, ambíguas e parecem incluir quase qualquer pessoa entre a infância e a velhice.

Sabemos que entre os gregos, e até à época de Aristóteles, não havia restrições morais ou legais contra a prática do infanticídio. A partir desta ideia, podemos supor que a visão grega do significado da vida de uma criança era drasticamente diferente da nossa. Embora os gregos possam ter sido ambivalentes, até mesmo confusos (pelos nossos padrões), sobre a natureza da infância, eles eram totalmente apaixonados pela educação. Não pode haver dúvida de que os gregos inventaram a ideia de escola. A sua palavra para a designar significava "lazer", refletindo uma crença ateniense característica de que durante o lazer, uma pessoa civilizada naturalmente gastaria o seu tempo a pensar e a aprender. Os atenienses, como é bem conhecido, estabeleceram uma grande variedade de escolas, algumas das quais se tornaram veículos para a disseminação da cultura grega para muitas partes do mundo. Havia os seus ginásios, as suas faculdades Efésicas, as suas escolas de retórica e até mesmo escolas primárias, nas quais eram ensinadas a leitura e a aritmética. E embora as idades dos jovens estudiosos - digamos, na escola primária - fossem mais avançadas do que poderíamos esperar (muitas crianças gregas não aprenderam a ler até a adolescência), onde quer que haja escolas, há consciência, em algum grau , da especificidade da juventude.

No entanto, a preocupação grega com a escola não deve ser entendida como que significando que sua concepção de infância é paralela à nossa. Na verdade, DeMause conjectura que “cem gerações de mães” observaram impassivelmente os seus bebés e filhos a sofrerem de uma fonte de desconforto ou de outra porque as mães (e, enfaticamente, os pais) não tinham o mecanismo psíquico necessário para ter empatia pelos filhos.


Os romanos, é claro, levaram emprestada a noção grega de escolaridade e até desenvolveram uma consciência da infância que ultrapassou a ideia grega. A arte romana, por exemplo, revela “um sentimento de idade bastante extraordinário da criança jovem e em crescimento, que não foi encontrado novamente na arte ocidental até a época do Renascimento." - segundo Plumb.

Os romanos começaram a fazer uma ligação, considerada normal pelos modernos, entre a criança em crescimento e a ideia de vergonha. Esta foi uma etapa crucial na evolução da ideia de infância. A questão é, simplesmente, que sem uma ideia bem desenvolvida de vergonha, a infância não pode existir. Aqui somos confrontados com uma visão inteiramente moderna, que define a infância, em parte, por reivindicar para ela a necessidade de ser resguardada dos segredos dos adultos, principalmente dos segredos sexuais.

A lei que proíbe o infanticídio não chega até 374 d.C., mas é uma extensão da ideia de que as crianças precisam de proteção e cuidados, educação e liberdade de segredos adultos

E então, depois dos romanos, todas estas idéias desaparecem!


Todos nós ouvimos falar sobre as invasões dos bárbaros do norte, o colapso do Império Romano, o enterro da cultura clássica e a queda da Europa na que é chamada Idade das Trevas e depois na Idade Média.

O primeiro sinal foi que a alfabetização desaparece. O segundo que a educação desaparece. O terceiro é que a vergonha desaparece. E o quarto, como consequência das outras três, é que a infância desaparece. Por outras palavras, se definirmos uma cultura letrada não com base no ter um sistema de escrita, mas com base em quantas pessoas podem lêr, e com que facilidade. A questão do porquê do declínio da alfabetização permite-nos algumas conjecturas plausíveis.


O que aconteceu na Europa - para simplificar - não é que o alfabeto tenha desaparecido, mas sim que a capacidade dos leitores de interpretá-lo desapareceu: A Europa, de facto, reverte por um tempo a uma condição de leitura análoga à que existia nas culturas mesopotamicas pré-gregas."


Outra explicação para a perda de alfabetização, de forma alguma contraditória à primeira, é que as fontes de papiro e pergaminho tornaram-se escassas, ou , então que a severidade da vida não permitia ter a energia para fabricá-los. Sabemos que o papel não chegou à Europa medieval até ao século XIII, época em que os europeus começaram imediatamente a fabricá-lo, em moinhos movidos a água. Certamente não será por acaso que o início das grandes universidades medievais e um correspondente interesse renovado pela alfabetização coincidem com a introdução e a manufatura do papel.

É, portanto, bastante plausível que a escassez de superfícies de escrita por várias centenas de anos tenha criado uma situação hostil à alfabetização social. Isto e, manter o controle sobre as idéias, organização e lealdade de uma população grande e diversa. Certamente, teria sido do interesse da Igreja encorajar um acesso mais restrito à alfabetização, e fazer com que seus clérigos formassem uma classe de escribas que sozinha teria acesso aos segredos teológicos e intelectuais.

Na Idade Média, Barbara Tuchman diz-nos: “O leigo médio adquiria conhecimento principalmente de ouvido, por meio de sermões públicos, peças de mistério e recitação de poemas narrativos, baladas e contos.” Assim, a Europa voltou a uma condição “natural” de comunicação humana, dominada pela fala e reforçada pela música.

Durante quase toda a nossa história, foi assim que os seres humanos conduziram os seus negócios e criaram a cultura.

Afinal, como Havelock nos lembra, biologicamente todos somos oradores. Os nossos genes são programados para a linguagem falada. A alfabetização, por outro lado, é um produto do condicionamento cultural.

Jean-Jacques Rousseau, o grande defensor do nobre selvagem, concordaria seguramente com isto, e acrescentaria que, se os homens querem viver o mais perto possível da natureza, eles devem desprezar os livros e a leitura. Em Émile, ele diz-nos que “a leitura é o flagelo da infância, pois os livros ensinam-nos a falar sobre coisas que desconhecemos”.

Rousseau está, cremos nós, correto, no sentido em que a leitura permite-nos entrar num mundo não observado e abstracto do conhecimento, cria uma divisão entre quem não sabe ler e quem sabe. Ler é o flagelo da infância porque, em certo sentido, cria a idade adulta. A literatura de todos os tipos - incluindo mapas, gráficos, contractos e escrituras - colecta e guarda segredos valiosos. Assim, num mundo letrado, ser adulto implica ter acesso a segredos culturais codificados em símbolos não naturais. Num mundo alfabetizado, as crianças devem tornar-se adultos. Mas, num mundo não alfabetizado, não há necessidade de distinguir nitidamente entre a criança e o adulto, pois há poucos segredos, e a cultura não precisa de nos treinar para a compreender.

No mundo oral, não há muito conceitos de adulto e, portanto, menos ainda de criança. E é por isso que, em todas as fontes, se constata que na Idade Média a infância terminava aos sete anos. Porquê os sete? Porque é nessa idade que as crianças dominam a fala. Elas conseguem dizer e entender o que os adultos conseguem dizer e entender. Elas são capazes de conhecer todos os segredos da língua, que são os únicos segredos que são necessários saber. E isso ajuda-nos a explicar porque é que a Igreja Católica designou a idade de sete anos como a idade em que se presumia saber a diferença entre o certo e o errado, a Idade da Razão. Também nos ajuda a explicar o porquê, de até ao século XVII, as palavras usadas para denominar rapazes podia se referir a homens de trinta, quarenta ou cinquenta anos, pois não havia palavra - em francês, alemão ou inglês - para um rapaz entre as idades de sete e dezesseis. A palavra criança (kind) expressava parentesco, não uma idade. Mas, acima de tudo, o oralismo da Idade Média ajuda-nos a explicar por que não havia escolas primárias. Pois onde a biologia determina a nossa competência para a comunicação, não há necessidade de escolas.


Claro, as escolas não são desconhecidas na Idade Média, existem algumas associadas à Igreja, outras privadas. Mas a completa ausência da ideia de uma educação primária para ensinar a ler e escrever e fornecer uma base para a aprendizagem posterior, prova a ausência de um conceito de educação alfabetizada. A maneira medieval de aprender é a através da Oralidade: ocorre essencialmente por meio dos aprendizes e do serviço - o que chamaríamos hoje de “estágios”.

Se uma criança medieval fosse à escola, começaria aos dez anos, ou provavelmente mais tarde. Ela viveria sozinha num alojamento na cidade, longe da sua família. Seria comum encontrar na sua classe adultos de todas as idades, e ela não se teria apercebido de ser diferente deles. Ela certamente não encontraria nenhuma correspondência entre as idades dos alunos e o que eles estudavam. Teria havido repetição constante nas aulas, pois chegariam novos alunos continuamente que não teriam ouvido o que o Mestre havia dito anteriormente. É claro que não haveria mulheres presentes, e assim que os alunos fossem dispensados ​​da disciplina da sala de aula, eles seriam livres para fazer o que quisessem no exterior. O que podemos dizer, então, com certeza, é que no mundo medieval não havia nenhuma concepção de desenvolvimento infantil, nenhuma concepção de pré-requisitos ou aprendizagem sequencial, nenhuma concepção de escolaridade como preparação para um mundo adulto.

Como Ariès resume: “A civilização medieval havia esquecido a paideia dos antigos e ainda nada sabia da educação moderna”. Depois de estudar pinturas medievais, literatura, tratados, cartas filosóficas e religiosas, Aries conclui que a consciência da infância faltava na sociedade medieval. A tese de Philippe Aries, traduzida para português para A Criança e a Vida Familiar no Antigo regime, foi considerada uma bíblia da história da infância.

Segundo Ariés: " Parece mais provável que não houvesse lugar para a infância no mundo, na época medieval ... Os homens dos séculos X e XI não se detiveram na imagem da infância, e essa imagem não tinha interesse nem realidade para eles. "


Na realidade, se pegarmos na Arte como testemunho, a representação das crianças na arte ocidental variou muito ao longo dos séculos. As primeiras ilustrações de crianças na arte ocidental são representações medievais do menino Jesus. Onde nessas imagens, ele é mostrado como um mini adulto; um homem pequeno, rígido e antinatural. E essas imagens foram criadas para ensinar devoção.


Pode-se dizer então, que uma das principais diferenças entre um adulto e uma criança é que o adulto conhece certas facetas da vida - os seus mistérios, as suas contradições, e a sua violência, as suas tragédias - que não são consideradas adequadas ao conhecimento das criança; e que é, de facto, vergonhoso revelá-las indiscriminadamente. No mundo moderno, à medida que as crianças se aproximam da idade adulta, revelamos-lhes esses segredos, no que acreditamos ser uma forma psicologicamente assimilável. Mas tal ideia só é possível numa cultura na qual há uma distinção nítida entre o mundo adulto e o mundo infantil, e onde existem instituições que expressam essa diferença. O mundo medieval não fazia essa distinção e não tinha tais instituições.


J. H. Plumb diz-nos: “não existia um mundo separado da infância. As crianças compartilhavam os mesmos jogos que os adultos, os mesmos brinquedos, escutavam os mesmos Contos de Fadas."

A ausência de alfabetização, a ausência da ideia de educação, a ausência da ideia de vergonha - estas são as razões pelas quais a ideia de infância não existia no mundo medieval. E devemos incluir nesta teoria também não apenas a severidade da vida, mas mais particularmente a alta taxa de mortalidade infantil. Em parte devido à incapacidade das crianças de sobreviverem, os adultos não tinham, e não podiam, ter com eles o compromisso emocional que hoje aceitamos como normal. A visão prevalecente era ter muitos filhos na esperança de que dois ou três sobrevivessem. Com base nisso, as pessoas obviamente não se podiam permitir ficar muito apegadas às crianças.


A imprensa escrita criou então, uma nova definição de idade adulta baseada na competência de leitura e, correspondentemente, uma nova concepção de infância baseada na incompetência de leitura.


Antes da chegada deste novo elemento, a infância terminava aos sete anos e a idade adulta começava imediatamente. Não havia estágios intermediários porque nenhum era necessário. É por isso que antes do século dezesseis não havia livros sobre educação infantil, e muito poucos sobre as mulheres no seu papel de mães. É por isso que os jovens participavam da maioria das cerimónias, inclusive das procissões fúnebres, não havendo razão para protegê-los da morte. É por isso que não existia literatura infantil. De facto, na literatura, segundo Tuchman “o principal papel das crianças era morrer, geralmente afogadas, sufocadas ou abandonadas ...” . E por isso não havia livros de pediatria. E a razão porque que as pinturas consistentemente retratam as crianças como adultos em miniatura, pois assim que as crianças abandonam as fraldas, elas vestem-se exatamente como os homens e mulheres da sua classe social. A linguagem de adultos e crianças também era a mesma. Não há, por exemplo, nenhuma referência ao jargão infantil anterior ao século XVII, após o qual as referências são numerosas. E, é por isso que a maioria das crianças não ia à escola, pois nada havia de importante para lhes ensinar; a maioria delas era mandada embora de casa para fazer trabalhos braçais ou servir como aprendizes.


E então, sem que ninguém suspeitasse, um ourives de Mainz, Alemanha, com a ajuda de um velho lagar, deu à luz a Infância. Bem, não deveriamos estar a fazer esta afirmação visto que a Sara vive numa cidade que defende que foi um filho seu o pai da mesma invenção: Laurens Janszoon Coster, estamos a falar da Imprensa.


É óbvio que, para uma ideia como a infância surgir, deve haver uma mudança no mundo dos adultos. E essa mudança não deve ser apenas de grande magnitude, mas de natureza especial. Especificamente, deve gerar uma nova definição de idade adulta. Durante a Idade Média ocorreram várias mudanças sociais, algumas invenções importantes, como o relógio mecânico, e muitos grandes eventos, incluindo a Peste Negra. Mas nada aconteceu que exigisse que os adultos alterassem sua concepção da própria idade adulta. Até que, em meados do século XV, tal evento ocorreu: a invenção da prensa tipográfica com tipos móveis! Espantados?


A imprensa criou um novo mundo simbólico que exigiu, por sua vez, uma nova concepção da idade adulta. A nova idade adulta, por definição, excluía as crianças. E à medida que as crianças eram expulsas do mundo adulto, tornou-se necessário encontrar um outro mundo para elas habitarem. Esse outro mundo veio a ser conhecido como infância.

Enquanto o relógio, como afirma Lewis Mumford, eliminou a Eternidade como medida e foco das acções humanas, a imprensa restaurou-a. A impressa vincula o presente ao para sempre. Ela carrega a identidade pessoal para domínios desconhecidos. .

Após a impressão, a questão de quem escreveu o quê torna-se importante, assim como a questão de quem fez o quê. A posteridade tornou-se uma ideia viva, tal como que nomes poderiam legitimamente ali viver, este era um ideal pelo qual valia a pena lutar.


Para compreender como este acontecimento influencia a invenção e o crescimento da infância, podemos tomar como guia os estudos de Harold Innis. Innis enfatizou que as mudanças na tecnologia de comunicação invariavelmente têm três tipos de efeitos: elas alteram a estrutura dos interesses (as coisas sobre as quais pensamos), o caráter dos símbolos (as coisas com as quais pensamos) e a natureza da comunidade (a área em que os pensamentos se desenvolvem ).

Uma máquina pode fornecer um novo conceito de tempo, assim como o relógio mecânico. Ou de espaço e escala, como o telescópio. Ou de conhecimento, como fazia o alfabeto. Ou das possibilidades de melhorar a biologia humana, como aconteceu com os óculos.


A Europa não só tinha um sistema de escrita alfabético de dois mil anos, mas também uma tradição de manuscritos bastante rica, o que significava que havia textos importantes à espera de serem impressos. Os europeus sabiam fabricar papel, coisa que vinham a fazer desde há duzentos anos. Apesar de todo o analfabetismo generalizado, existiam escribas que sabiam ler e escrever e podiam ensinar outros a fazê-lo. O Renascimento da aprendizagem no século XIII e a redescoberta da sabedoria da cultura clássica abriram o apetite pelos livros. Também o crescimento do comércio e o início da era dos Descobrimentos geraram uma necessidade de notícias, de contratos duráveis, de escrituras, de mapas confiáveis ​​e padronizados. Podemos dizer, então, que a condição intelectual da Europa em meados do século XV tornou necessária a imprensa, o que explica, sem dúvida, o facto de tantos homens em lugares diferentes trabalharem no mesmo problema ao mesmo tempo. Como Gutenberg e Janszoon Coster.


Ao mesmo tempo que a imprensa desencadeou uma autoconsciência elevada e ousada nos escritores, criou uma atitude semelhante nos leitores. Antes da impressão, toda a comunicação humana ocorria num contexto social. Mesmo a leitura que era feita usava como modelo o modo oral, o leitor falava as palavras em voz alta enquanto os outros acompanhavam. Mas com o livro impresso outra tradição começou: o leitor isolado e a sua visão privada!

A oralidade foi silenciada e o leitor e a sua resposta à leitura foram separados do contexto social. O leitor retira-se para a sua própria mente e, do século XVI até ao presente, o que a maioria dos leitores exige dos outros é a sua ausência ou, se então, o seu silêncio. Ao ler, tanto o escritor quanto o leitor entram numa espécie de conspiração contra a presença social e a consciência. Ler é, numa frase, um acto anti-social.

Podemos dizer, então, que a imprensa deu-nos a nós mesmos, como indivíduos únicos, para pensar e falar. E este sentimento intensificado de identidade foi a semente que acabou levando ao florescimento da infância.

A infância, é claro, não surgiu da noite para o dia. Demorou quase duzentos anos até se tornar uma característica aparentemente irreversível da civilização ocidental. Mas isto não poderia ter acontecido sem a ideia de que cada indivíduo é importante em si mesmo, que a mente e a vida humanas, nalgum sentido fundamental, transcendem a comunidade. Pois à medida que a ideia de identidade pessoal se desenvolve, a sua aplicação estende-se também aos jovens.


No século XVIII, a aceitação da inevitabilidade da morte de crianças (Ariès chama a isto o conceito de “desperdício necessário”) desapareceu em grande parte. Na verdade, perto do final do século XVI, a morte de uma criança começa a ser representada de várias maneiras nas campas dos pais. Um facto macabro, talvez, mas indicativo de uma consciência crescente de que a vida de todos conta.

Mas o individualismo por si só, não poderia ter produzido a infância, esta requer uma base convincente para separar as pessoas em classes diferentes. Para isso, algo mais precisava acontecer. E assim foi. Por falta de um termo melhor, devemos chamá-la de "lacuna de conhecimento".

Cinquenta anos após a invenção da prensa , tornou-se óbvio que o ambiente de comunicação da civilização europeia estava a dissolver-se e a reconstruir-se por diferentes linhas. Desenvolveu-se uma nítida divisão entre os que sabiam ler e os que não sabiam, sendo que os últimos ficavam restritos a uma sensibilidade e nível de interesse medievais, e os primeiro impelidos para um mundo de novos factos e percepções!

Com a impressão, novas coisas para falar proliferavam. E estavam todas em livros, ou pelo menos impressas.


Que tipo de informação havia nos livros? Que coisas estavam disponíveis para aprender?

Havia, de tudo, livros de “como fazer”: livros sobre metalurgia, botânica, linguística, boas maneiras e, finalmente, pediatria. The Boke of Chyldren de Thomas Phaire, publicado em 1544, é geralmente considerado o primeiro livro sobre pediatria escrito por um inglês. (Um italiano, Paolo Bagellardo, publicou um anteriormente em 1498.)


A publicação de livros de pediatria e de boas maneiras é um forte indício de que o conceito de infância já havia começado a formar-se, menos de um século depois da Impressa.


Mas o foco aqui é que a prensa gerou o que hoje chamamos de "explosão do conhecimento". Para ser um adulto em pleno funcionamento, era necessário ir além do costume e da memória para mundos previamente desconhecidos ou contemplados.


A Prensa tornou a língua vernacular um meio de comunicação de massas pela primeira vez. Este facto teve consequências não apenas para os indivíduos, mas também para as nações. Não podemos ter dúvidas de que a linguagem fixa e visível desempenhou um papel enorme no desenvolvimento do nacionalismo. A ideia de uma “língua materna” será portanto um produto da tipografia.


Outra revolução directa e incontestavelmente associada à prensa foi a Reforma Protestante. Martinho Lutero disse sobre a impressa "o acto de graça mais elevado e extremo de Deus, pelo qual a palavra do Evangelho é impulsionada."


No final do século dezesseis temas sobre astronomia, anatomia e física estavam disponíveis para qualquer pessoa que soubesse ler. Novas formas de literatura estavam disponíveis. A Bíblia estava disponível. Documentos comerciais estavam disponíveis. Conhecimento prático sobre máquinas e agricultura e medicina estava disponível. No decorrer do século, um ambiente simbólico inteiramente novo foi criado. Esse ambiente encheu o mundo com novas informações e experiências abstratas. Exigia novas habilidades, atitudes e, principalmente, um novo tipo de consciência.

A Individualidade, uma capacidade enriquecida de pensamento conceitual, vigor intelectual, uma crença na autoridade da palavra impressa, uma paixão pela clareza, sequência e razão - tudo isto passou para o primeiro plano, à medida que o ambiente oral medieval recuava.


O que aconteceu, foi que surgiu o Homem Liberal e com a sua vinda deixou-nos as crianças na sua passagem. Até esse momento não houvera a necessidade da ideia de infância, pois todos compartilhavam o mesmo ambiente de informação e, portanto, viviam no mesmo mundo social e intelectual. Mas, à medida que a imprensa se expandia, tornou-se óbvio que um novo tipo de idade adulta fora inventado. Da prensa em diante, a idade adulta teve que ser conquistada. Tornou-se uma conquista simbólica, não biológica. Da impressão em diante, as crianças teriam que se tornar adultos, e teriam de fazer isso aprendendo a ler, entrando no mundo da tipografia. E para isso elas precisariam de educação. Portanto, a civilização europeia reinventou as escolas. E, ao fazer isso, tornou a infância uma necessidade!


Os primeiros cinquenta anos da imprensa escrita são chamados de incunábulos, literalmente, quer dizer o período do berço. Na época em que a impressão saiu do berço, a ideia de infância havia mudado e o seu próprio incunábulo durou cerca de duzentos anos.


Depois dos séculos dezesseis e dezessete, a infância foi reconhecida como existente, como uma característica da ordem natural das coisas. Escrevendo sobre os incunábulos da infância, J. H. Plumb observa que: "Cada vez mais, a criança torna-se um objecto de respeito, uma criatura especial com uma natureza diferente e necessidades diferentes, que exigia separação e protecção do mundo adulto." Separação é, obviamente, a palavra-chave. Ao separar as pessoas umas das outras, criamos classes de pessoas, das quais as crianças são um exemplo histórico e humano.

As crianças não foram separadas do resto da população porque se acreditava que tinham uma “natureza diferente e necessidades diferentes”. Acreditava-se que elas tinham uma natureza e necessidades diferentes porque haviam sido separadas do resto da população. E elas foram separadas porque se tornou essencial à cultura que aprendessem a ler e escrever, e como ser o tipo de pessoa que uma cultura impressa exigia.


Claro, que não estava totalmente claro no início o que ler e escrever poderiam ou fariam às pessoas. Como devemos calcular, as compreensões predominantes do processo de alfabetização eram ingénuas, assim como na sociedade moderna a nossa compreensão dos efeitos dos media era ingénua.


As classes de comerciantes, por exemplo, queriam que os seus filhos soubessem o ABC para que pudessem lidar com o mundo do comércio de papel. Os luteranos queriam pessoas que pudessem ler tanto a Bíblia em língua vernacular quanto as queixas contra a Igreja. Alguns católicos viram nos livros um meio de incutir um maior sentimento de obediência às Escrituras. Os puritanos queriam que a leitura fosse a principal arma contra "os três grandes males da ignorância, profanidade e ociosidade".


Assim, a infância evoluiu desigualmente, pois, depois de investigarmos as complexidades históricas, surge uma conclusão bastante simples: onde a alfabetização era altamente valorizada e persistentemente, havia escolas, e onde havia escolas, o conceito de infância desenvolveu-se rapidamente. E foi por isso que a infância surgiu mais cedo e em contornos mais nítidos nas Ilhas Britânicas do que noutros lugares. No reinado de Henrique VIII, William Forrest exigia educação primária. Aos quatro anos, ele propôs, que as crianças fossem enviadas para a escola “para aprender alguma literatura” para que pudessem entender o caminho de Deus.

Houve, de facto, três tipos de escolas que se desenvolveram: as escolas elementares, que ensinavam leitura, escrita e aritmética, as escolas livres, que ensinavam matemática, composição em inglês e retórica; e as escolas de gramática, que treinavam os jovens para as universidades, ensinando-lhes gramática inglesa e linguística clássica. Embora deva ser entendido que a escolaridade era em grande parte uma preocupação das classes média e alta, há evidências de que mesmo entre as classes pobres algumas mulheres sabiam ler.


E que tudo isso levou a uma mudança notável no estatuto social das crianças.

Como a escola foi projectada para a preparação de um adulto alfabetizado, as crianças passaram a ser compreendidas não como adultos em miniatura, mas como algo totalmente diferente - adultos não formados. A aprendizagem escolar tornou-se como uma característica da natureza especial da infância.As faixas etárias ... organizam-se em torno das instituições”, comenta Ariès, e assim como no século XIX a adolescência passou a ser definida pelo recrutamento, nos séculos XVI e XVII, a infância passou a ser definida pela frequência escolar. A palavra aluno passou a ser sinónimo da palavra criança.


A infância passou a ser a descrição de um nível de realização simbólico. A partir desta época, infância ( aqui vinda da ideia infante/bebé) terminava quando o domínio da fala era alcançado. A meninice ( que seria a segunda fase da infância) começava com a tarefa de aprender a ler. Na verdade, a palavra criança era frequentemente usada para descrever adultos que não sabiam ler, adultos considerados intelectualmente infantis.

O vínculo entre educação e idade civil levou algum tempo para se desenvolver. As primeiras tentativas de estabelecer classes e notas de alunos basearam-se na capacidade de leitura dos alunos, não nas suas idades cronológica.


Quando um grupo - qualquer grupo - é formado com base numa única característica, é inevitável que outras características comecem a ser notadas. O que começou como uma categoria de pessoas que devem ser ensinadas a ler acaba como uma categoria percebida como única em múltiplas dimensões. À medida que a própria infância se tornou uma categoria social e intelectual, os estágios da infância tornaram-se visíveis.

O que se seguiu a isto foi inevitável, ou assim parece em retrospectiva. Por um lado, as roupas das crianças tornaram-se diferentes das dos adultos. No final do século XVI, o costume exigia que a infância tivesse seus trajes especiais. A diferença nas roupas das crianças, bem como a diferença na percepção dos adultos sobre as características físicas das crianças, está bem documentada nas pinturas do século XVI em diante, ou seja, as crianças não são mais retratadas como adultos em miniatura.

A linguagem das crianças passou a ser diferenciada da fala dos adultos. Conforme falamos anteriormente, o jargão ou gíria infantil era desconhecido antes do século XVII. Depois disso, ele desenvolveu-se de forma rápida e rica. Os livros sobre pediatria também proliferaram.

Até o simples acto de nomear crianças sofreu mudanças, refletindo o novo estato das crianças.


Na Idade Média, não era incomum que nomes idênticos fossem dados a todos os irmãos, distinguindo-se um do outro por rótulos de ordem de nascimento. Mas, no século XVII, esse costume desapareceu e os pais comumente atribuíam a cada filho um nome único, muitas vezes escolhido pelas expectativas dos pais em relação ao filho.


À medida que a ideia da infância tomou forma, a estrutura da família moderna também tomou forma. O evento essencial na criação da família moderna, como Ariès sublinhou, foi a invenção e a extensão da escolaridade formal. A exigência social de que as crianças sejam formalmente educadas por longos períodos levou a uma reorientação do relacionamento dos pais com os filhos. As suas expectativas e responsabilidades tornaram-se mais sérias e enriquecedoras à medida que os pais evoluíram para tutores, guardiães, protectores, nutridores, punidores, juízes do bom gosto e rectidão.


Mas algo mais aconteceu à família que tem relação com o conceito de infância e que não deve ser negligenciado. Na Europa surgiu uma classe média visível e crescente, pessoas com dinheiro e com vontade de gastá-lo.

Uma melhoria das condições económicas contribuiu para intensificar a consciência das crianças e torná-las mais visíveis socialmente. Também é bom lembrar que meninos era, de facto, a primeira classe de pessoas especializadas, devemos lembrar também que estes eram os meninos da classe média. Inquestionavelmente, a infância começou como uma ideia da classe média, em parte porque a classe média tinha recursos para isso. Demorou mais de um século antes que a ideia se infiltrasse nas classes mais baixas. Todos estes desenvolvimentos foram os sinais externos do surgimento de uma nova classe de pessoas. Eram pessoas que falavam diferente dos adultos, que passavam os dias de maneira diferente, vestiam-se de forma diferente, aprendiam de forma diferente e, no final, pensavam de forma diferente. O que aconteceu - a mudança estrutural subjacente - foi que por meio da prensa móvel e da sua criação, a escola e os adultos, viram-se com um controle sem precedentes sobre o ambiente simbólico das crianças e, portanto, eram capazes e obrigados a estabelecer as condições pelas quais uma criança era para se tornar um adulto. Ao dizer isso, não queremos sugerir que os adultos sempre estiveram cientes do que estavam fazer ou por que o faziam.

Numa extensão considerável, os desenvolvimentos foram ditados pela natureza dos livros e das escolas. Por exemplo, ao escrever livros-de-texto sequenciados e ao organizar as classes escolares de acordo com a idade do calendário, os professores inventaram, por assim dizer, os estágios da infância. As nossas noções sobre o que uma criança pode ou deve aprender, e em que idades, foram em grande parte derivadas do conceito de um currículo sequenciado; ou seja, a partir do conceito de pré-requisito e, claro, a capacidade de um extraordinário autocontrole.


Por vezes, esquecemo-nos que a aprendizagem através livros é “antinatural” no sentido em que exige das crianças um alto grau de concentração e serenidade que vai contra a sua natureza. Mesmo antes de existir a “infância”, podemos supor que os jovens eram mais inquietos e enérgicos do que os adultos. De facto, uma das várias razões pelas quais Philippe Ariès criticou a invenção da infância é que ela tende a restringir os altos níveis de energia da juventude. Num mundo sem livros e escolas, a exuberância juvenil recebeu o campo mais amplo possível para se expressar. Mas num mundo de aprendizagem através de livros, tal exuberância precisava de ser modificada drasticamente.


Silêncio, imobilidade, contemplação, regulação passaram a ser as funções corporais, que se tornaram altamente valorizadas. É devido a isso que, a partir do século XVI, professores e pais começaram a impor uma disciplina bastante severa às crianças. As inclinações naturais das crianças começaram a ser percebidas não apenas como um impedimento à aprendizagem, mas como uma expressão de um caráter maligno. Assim, a “natureza” teve que ser superada no interesse de alcançar uma educação satisfatória e uma alma purificada. A capacidade de controlar e superar a própria natureza tornou-se uma das características definidoras da vida adulta e, portanto, um dos propósitos essenciais da educação; para alguns, o propósito essencial da educação.

Apesar da reação influente de Rousseau contra este sentimento, séculos de crianças foram submetidas a uma educação destinada a torná-las "boas", isto é, fazê-las suprimir as suas energias naturais. Claro, às crianças nunca tal regime foi do seu agrado e, já em 1597, Shakespeare foi capaz de nos fornecer uma imagem comovente e inesquecível da criança que sabe que a escola é o crucifixo da idade adulta. Na famosa passagem das “idades do homem” em Como gostais, Shakespeare fala do “estudante chorão, com a sua sacola / E rosto matinal brilhante, rastejando como um caracol / Sem querer ir para a escola”. À medida que o autocontrole se torna importante como um princípio intelectual e teológico, bem como uma característica da idade adulta, ele refletiu-se nos costumes e na etiqueta sexual.


No final do século XVI existia uma teologia do livro, um novo e crescente sistema comercial baseado na impressão e um novo conceito de família organizado em torno da escolaridade. Juntos, eles promoveram ferozmente a ideia de moderação em todas as questões e da necessidade de fazer distinções claras entre o comportamento público e privado.


Há uma ironia peculiar nisto porque, por um lado, a cultura emergente do livro quebrou "monopólios de conhecimento": disponibilizou segredos teológicos, políticos e académicos a um vasto público que, antes, não tinha acesso a eles. Mas, por outro lado, ao restringir as crianças à aprendizagem através de livros, submetendo-as à psicologia de aprendiz/aluno e à supervisão dos professores e pais, a impressa fechou o mundo dos assuntos quotidianos com os quais os jovens estavam tão familiarizados na Idade Média. Eventualmente, o conhecimento desses segredos culturais tornou-se uma das características distintivas da idade adulta, de modo que, até recentemente, uma das diferenças importantes entre a criança e o adulto era que os adultos possuíam informações que não eram consideradas adequadas para as crianças saberem. À medida que as crianças se aproximavam da idade adulta, eram-lhes revelados esses segredos, por etapas, culminando no "desvendar da sexualidade".


É essa a razão pela qual, no final do século XVI, os professores das escolas se recusavam a permitir que as crianças tivessem acesso a “livros indecentes” e puniam as crianças por usarem linguagem obscena. Além disso, eles começaram a desencorajar as crianças a jogarem a dinheiro, o que na Idade Média era o passatempo favorito dos jovens. E como não se queria que as crianças conhecessem os segredos do comportamento adulto, os livros sobre boas maneiras tornaram-se lugar-comum.


De qualquer forma, à medida que a infância e a idade adulta se diferenciavam cada vez mais, cada esfera elaborava o seu próprio mundo simbólico e, por fim, passou a ser aceite que a criança não compartilhava e não podia compartilhar a linguagem, o conhecimento, os gostos, os apetites e a vida social de um adulto. Na verdade, a tarefa do adulto era preparar a criança para a gestão do mundo simbólico do adulto. Na década de 1850, os séculos da infância tinham cumprido sua função e, em todo o mundo ocidental, a infância era tanto um princípio social quanto um facto social.



( a continuar...)







Wilhelm Schutze, The reckless pupil ( o aluno imprudente), 1840-1898




Bibliografia:

  • Child culture - play culture, 2002 In F. Mouritsen & J. Qvortrup (Eds.), Childhood and Children’s, pela Odense: University Press of Southern Denmark, de F. Mouritsen

  • A criança e a vida familiar no Antigo regime , de Philippe Ariés Relógio D'Água

  • Childhood: a developmental approach I - Understanding childhood: a cross disciplinary

  • approach, 2013, pela UK The Open University, de M. Woodheas

  • The Ties That Bound: Peasant Families in Medieval England, 1986, pela Oxford Univefrsity Press de Barbara A. Hanawalt

  • The Routledge History of Childhood in the Western World Childhood in Medieval and Early Modern Times, 30 Novembro 2012, pela Routledg, de Paula S. Fass

  • Towards a sociology of education, 2 Janeiro 1979, pela Routledg, de John Beck, Chris Jenks.

  • Key concepts in childhood studies, 2008, pela SAGE Publications Ltd, de James, A. & James, A.

  • The Evolution of Childhood, New York 1974,pela The Psychohistory Press, de Loyd deMause.

  • Origins of Western Literacy, 1976, pelo Ontario Institute for Studies in Education, de Edric deHavelock

  • Child Rearing in Seventeenth Century England and America, no livro de Lloyd deMause, The History of Childhood., de 1974 pela New York: The Psychohistory Press, de Joseph Illick ,

  • The Great Change in Children, Vol. 13, No. 1, 1971, pela Winter, de J. H. Plumb

  • A Distant Mirror, New York 1978 pela Alfred A. Knopf, de Barbara W. A. Tuchman

  • The Disappearance of Childhood, 2 de Agosto de 1994 pela Vintage, de Neil Postman

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page