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Além da Resistência: Compreender a Contra-Vontade no Desenvolvimento Infantil

Atualizado: 9 de jan.

Por que é que as crianças pequenas protestam com a mera sugestão de se vestirem ou despirem? Ou quando são solicitadas a cumprimentar estranhos? Ou por que é que alguns adolescentes se opõem às regras e limites em relação ao uso da tecnologia ou horários de saída e entrada? À primeira vista, estas situações podem parecer não estar relacionadas... exceto na sua capacidade de levar o adulto à frustração e, muitas vezes, também à persistência dos comportamentos que se pretendem evitar. Mas a verdade é que todas estas situações partilham causas semelhantes.


O que acontece é que todo o ser humano, quando nasce, vem com o instinto de resistir e se opor, ou seja, de fazer o oposto do que lhe é dito, o que não é novidade para qualquer pai ou educador/professor. O que pode ser surpreendente para muitos é que esta resistência pode derivar do instinto de contra-vontade, que é inato a todos os humanos.


O que é a contra-vontade? O termo “contra-vontade” foi cunhado pela primeira vez, na língua alemã, por Otto Rank e refere-se ao instinto de resistir, contrariar e se opor quando nos sentimos controlados ou coagidos. É-te familiar?


Por certo lembras-te da última vez que alguém te disse que estavas a exagerar em relação a algo importante para ti? Ou quando te disseram: "Não é assim que se faz, eu mostro-te como se faz". Lembras-te de como isso te fez sentir? Tiveste vontade de escutar/observar atentamente o que diziam, ou a vontade de contra-argumentar ou fazer o oposto surgiu mais forte ainda?


A contra-vontade é, portanto, uma resposta inata criada para proteger o eu, quando este se sente coagido ou quando enfrenta a separação. O que muitas vezes é intitulado de desafio, teimosia, oposição, má-educação, e a causadora de inúmeras lutas de poder.


Mas será mais fácil de perceber se nos lembrarmos que as crianças nascem programadas para serem guiadas pelas pessoas a quem estão ligadas – o que as torna propensas a resistir a pessoas com as quais não estão vinculadas. Se um estranho começar a dizer a uma criança o que fazer, ou para o seguir, queremos que ela resista às suas instruções, ou que o siga docemente?


A verdade é que não é qualquer um que deve “mandar” numa criança. E a contra-vontade é então uma ferramenta boa e preserva o lugar natural dos pais e cuidadores na vida de uma criança como sendo aquele que cuida dela, aquele que ela deve seguir.

Mas perguntas tu agora... Por que é que as crianças também resistem aos pais e a quem estão vinculadas?




Ao contrário do que possa parecer, isso não é um erro ou uma falha da natureza humana, ou necessariamente um sinal de que há uma vinculação insegura ou ambivalente. Apesar de ser um desafio para os adultos, a verdade é que se trata apenas de imaturidade, como muitos dos comportamentos na criança pequena, faz parte do querer ser um Eu, separado de nós, o que torna a criança também mais propensa a expressões de resistência.


Então, como já deves ter percebido, a contra-vontade é o instinto de nos opormos, desafiar e fugir quando nos sentimos coagidos ou controlados. E que a reação exacerbada do adulto à mesma pode levar a quebras na vinculação e a relações inseguras.


É uma forma de resistência que pode ser saudável, mas também pode ser um sinal de que a criança está presa a determinados comportamentos.


Ela é saudável quando revela um sinal do desenvolvimento infantil, comum às crianças em idade pré-escolar e aos adolescentes, que se deve ao seu crescimento e à necessidade de serem um Eu separado, e de quererem "fazer por si".


Mas que pode ser também um sinal de que a criança está presa a determinados comportamentos e que surge também quando a criança não está vinculada profundamente a alguém e se sente insegura na dependência dos adultos que a cuidam.


Vamos rever então como é que a criança/jovem expressa a contra-vontade:


- Ao fazer o oposto do que lhe foi pedido;

- Resiste, recusa, argumenta, ou responde mal;

- Não coopera e é desafiante;

- Está sempre atenta e atraída aos proibidos;

- Age de forma argumentativa, briguenta e conflituosa.

Alguns Mitos que levam a ficar presa a este tipo de comportamento:

- A criança é demasiado voluntariosa e temos de quebrar a sua vontade;

- A criança é teimosa e isso é hereditário, o: "é igualzinha ao pai/mãe!";

- A criança está a testar limites e quer ter o poder;

- A criança "faz de propósito" para levar o adulto à loucura!


Alguma destas frases faz parte das tuas crenças ou foi-te transmitida culturalmente e é-te difícil não deixares tomar conta de ti? Ou consegues gerir a situação em particular mas sentes a pressão de "todos os olhos estão postos em ti" quando a criança tem uma reação de contra-vontade em público?


Se respondeste sim às questões acima, muito possivelmente vais ter, ou tens problemas de contra-vontade em relação às crianças à tua volta. Verdade?


Queremos assegurar-te que esta resistência de uma criança não significa que, nós adultos, temos que abandonar os nossos limites, para deixá-la expressar o seu eu livremente. Apesar de, muitas vezes, implicar sim, deixá-la expressar a sua frustração sem nos deixarmos influenciar com os olhares ou julgamentos externos. É fundamental sentir as emoções.


Mas significa sim, que precisas de descobrir como manter o vosso relacionamento enquanto atravessam o furacão da contra-vontade. Sabemos que o que acontece nestas situações, em que a criança parece querer se opor a todas as nossas requisições, é que os nossos "deveres" são maiores do que os "quereres" da criança em nos seguir e agradar. E aqui temos de, mais uma vez, recorrer ao nosso instinto, observação e reflexão, e não a coerção, ameaças ou punição.


E o que acontece com o adulto nesta situação, por que tantos de nós recorrem à coerção, gritos, ameaças e punição?

"Se há algo que desejamos mudar na criança, devemos primeiro examiná-lo e ver se não é algo que poderia ser melhor mudado em nós mesmos." -Carl Jung


O que acontece com o adulto quando reage violentamente a estas situações é que, na maioria das vezes, não percebemos o que está a acontecer connosco internamente. Não paramos para analisar o que na realidade se passa. E o que acontece?


Primeiro ficamos hiper vigilantes, depois ficamos com medo, depois ficamos com raiva. E isto acontece tão rápido que nem vemos a escalada das nossas emoções até que é tarde demais.


Esta é a experiência fora do corpo do que acontece quando de repente sentimos raiva e depois paramos e observamos e pensamos: "O que estou eu a fazer? Eu não queria fazer isto!" Mas mesmo assim não conseguimos travar a nossa explosão. Certo?




Muitas vezes podem ser situações bem específicas, como estas da contra-vontade. Foram situações pelas quais fomos envergonhados quando crianças, ou isolados, em que a resposta à nossa contra-vontade foi repelida com: "Não gosto de ti quando te comportas assim, não te quero ver/ouvir quando te comportas assim!", que pode ser expressado nos mais variados formatos. Ou seja, a rejeição, que de alguma forma fomos sujeitos nessas alturas da nossa infância, e nos fez sentir emocionalmente abandonados, tendem a ser os gatilhos específicos para cada um de nós.


Sendo assim, quando a criança se comporta dessa mesma forma, os nossos gatilhos são acionados e regressamos à nossa própria vergonha e medo em torno dessas situações, em experiências exatas ou experiências semelhantes. E é assim que funciona o trauma geracional.


Quando fomos envergonhados/magoados/abandonados por algo que fizemos, projetamos essa vergonha nas crianças de maneira muito semelhante ao que aconteceu connosco. Alguns dos exemplos mais comuns, infelizmente, por ser uma área tão difícil para nós como seres humanos, acontecem em torno de situações emocionais. Digamos que se estavas muito incomodado com uma situação e estavas disposto a expressá-la, mas a resposta foi que foste envergonhado por essa expressão... essa expressão de raiva que internalizamos sai agora quando somos nós com a criança. E o pior é que muitas vezes nem nos lembramos de ter essas experiências. …


Porque é muito possível que tenhamos expressado esses sentimentos com dois ou três anos ou até mais novos e, ao vermos a reação do adulto, internalizamos: "-Uau, isto não é nada bom para os meus pais, eles não aceitam este comportamento!" E passámos a vida toda a reprimir esse comportamento, mas a emoção estava lá sem escape. Portanto, é para muitos de nós uma surpresa quando algo que nunca reconhecemos em nós mesmos ou nem sequer nos lembramos vimos reproduzido na relação com a criança, e reagimos a isso e sem podermos sequer reconhecer de onde veio.


E, como dissemos, estas respostas de contra-vontade das crianças não se limitam ao lar, elas ocorrem com outros adultos, como educadores e professores ou familiares/amigos significativos. E quanto mais nova e imatura for uma criança, mais importante é a relação com o adulto para ela poder ser orientada ou aprender com ele. Porque não nos podemos esquecer que é a vinculação que abre os ouvidos e o coração de uma criança para uma influência real e duradoura na sua vida – não a coerção, o suborno, as ameaças, recompensas ou a punição.


E a realidade é que quanto mais responsável nós, como adultos, nos sentirmos por liderar a criança e como responsáveis pelos seus comportamentos, mais provocativos podem parecer os atos de resistência e desafio. O que irá tornar as situações num verdadeiro desafio para o adulto, pois estas vão testar a sua capacidade de não reagir através do seu próprio instinto de contra-vontade quando uma criança está presa à resistência. Como explicamos acima.


Pois quanto mais tentamos controlar uma criança que é resistente, mais ela vai querer resistir de volta e exibir maior oposição. O que pode levar a uma escalada de tensão e conflito que corrói o relacionamento construído até então – ironicamente, o que era exatamente necessário para tornar a resistência menos influente desde o início. As lutas de poder constantes poderão criar insegurança e ansiedade na criança e podem afetar negativamente o seu desenvolvimento, e devemos ter esta realidade sempre presente como adultos conscientes.


Tendo sempre presente que o desafio é permanecer na posição de cuidador e liderar através da tempestade de contra-vontade. Sabendo que é a relação que abre o coração de uma criança para ser guiada por nós e ajuda a criar as condições ideais para o seu desenvolvimento saudável.


Então, o que devemos fazer quando a criança se recusa a ir para a mesa, sair do parque ou respeitar os horários de saída noturnas? Deixamos aqui as sugestões da Dr.ª Deborah MacNamara, com as quais concordamos integralmente.


Foca-te na relação primeiro.


Repetimos, o que torna uma criança receptiva a seguir o adulto é a relação. Antes de direcionar, precisamos de nos relacionar, acolhê-la – ou seja, olhar nos olhos, oferecer um sorriso, concentrarmo-nos no que está a acontecer – tudo isto antes de prosseguir com os nossos pedidos. Se precisarmos falar sobre algo que não está a correr bem, como incumprimentos de horários, é melhor acolhê-la primeiro para a tornar passível de nos escutar.


Reduz a coerção ao dirigir.


Às vezes, quando fazemos pedidos, falamos de forma coerciva ao tentar combater a sua resistência antes mesmo que ela a inicie. Declarações como “Tu tens que …” ou “Eu já te disse …” ou “Tu sabes que precisas de …” todas estas expressões servem para aumentar o instinto de contra-vontade. Também quando as consequências ou recompensas são vulgarmente usadas para fazer uma criança obedecer, com declarações como “Tu tens de fazer isto, ou então”, ou o

"Se não fizeres isto, então..." , que apenas exacerbam a resistência da criança, ou ensinam-na a negociar e não a colaborar.


Pressiona o botão da pausa, dá um passo para trás e revê o problema quando estiveres mais tranquilo/a.


Se estás preso/a a uma luta de poder com uma criança, muitas vezes é melhor fazer uma saída estratégica para evitar quebrar o relacionamento e evitar usar a força para fazer com que a criança ceda às tuas exigências. Também é importante manter uma posição de líder ao fazê-lo. Como por exemplo, “Vou dar-te algum tempo para pensar sobre isso e voltarei para conversarmos” ou “Penso que não é um bom momento para resolver esse problema”.


Dá espaço para as suas próprias ideias e iniciativas. (Queres mais sobre o assunto consulta o nosso artigo da semana passada.)


Se uma criança tem idade suficiente para se vestir, comer sozinha, ou organizar os trabalhos de casa, talvez esteja na altura de deixá-la tomar o comando dessas coisas? Se ela está ansiosa para ter a sua própria mente e exercer os seus próprios desejos e vontades, então encontrar alguns espaços em que ela se possa entregar a tarefas apropriadas à idade, pode ser uma estratégia útil. As atividades importantes que lhes devemos oferecer incluem qualquer coisa a ver com os seus cuidados, como comer, ou vestir, ou então com quem ela passa o tempo.


Faz as pazes quando necessário.


Se as nossas reações à contra-vontade de uma criança criaram distância no relacionamento, pode ser necessário dar-lhe tempo e regressar depois para fazer as pazes. Isso pode ser feito simplesmente com um pedido de desculpas e uma indicação de que gostarias que as coisas tivessem corrido melhor na situação.


Embora a criança possa afirmar: “Tu não mandas em mim!”, não precisamos de levar isso a sério ou tão pouco de reagir. Nós só precisamos liderar através da tempestade, sabendo que somos a sua melhor aposta e que ela se deve sentir sempre segura e protegida sob os nossos cuidados. Não há problema em a criança ter a sua própria mente/vontade, mas isso não significa que ela consegue sempre o que quer. Um dia a criança será a 'chefe' de si mesma e até que o nosso trabalho esteja feito, precisamos de lhe dar algum espaço para que ela abra as suas asas, mas não podemos deixar de lado as nossas responsabilidades de a cuidar.


E o que temos de sentir quando vemos uma criança que está numa posição de contra-vontade constante, é que ela está na realidade a gritar ao adulto:

-Preciso que me ajudes. Estou presa nas minhas emoções e preciso que me mostres como sair daqui. Preciso que me demonstres quem é o meu guia confiante, para que eu não tenha que continuar a exacerbar cada vez mais o meu comportamento para chamar-te à atenção, obter a tua liderança e levar-te ao ponto em que, também tu, estás fora de ti.


Porque, mais uma vez, toda a auto-regulação tem de partir da co-regulação! Nós temos de ser o cérebro pensante da criança que ainda o está a desenvolver.


E, como diz Neufeld, não nos podemos esquecer que nós temos de ser sempre a melhor aposta das nossas crianças.



NOTA:

- Dra. Deborah MacNamara: Ela é Conselheira Clínica e Desenvolvimentista, membro do corpo docente do Neufeld Institute e Diretora do Kid’s Best Bet, um centro de aconselhamento para famílias.


- Sugestões de Leituras:


EM PORTUGUÊS:

  • Os livros "Amar Não Basta"​​ e "Crianças Desafiantes" da Drª Laura Sanches, psicóloga clínica portuguesa especializada em mindfulness, parentalidade e educação centrada no desenvolvimento. Nestes livros ela aborda estratégias de empoderamento para pais e cuidadores, visando fortalecer o papel de adultos responsáveis e capazes em todas as fases da vida, desde a infância até à adolescência​​.

  • Os livros da Tânia Correia, psicóloga portuguesa, formada em Psicologia com Mestrado em Psicoterapia Cognitiva-Comportamental na área da infância e adolescência. Ela é também a criadora da página e do blogue 3m’s, que reúne mais de 77 mil seguidores. Entre os livros que publicou, destacam-se "Laboratório de Emoções" e "Menina, Mulher e Mãe"


EM INGLÊS:


1. "Attachment" editado por Ross A. Thompson, Jeffry A. Simpson, e Lisa J. Berlin. Este livro oferece perspectivas sobre questões teóricas clássicas e novos debates na pesquisa de apego

2. "Baby Bomb" por Kara Hoppe e Stan Tatkin. Utiliza a ciência por trás da teoria do apego para ajudar casais a fortalecer seu relacionamento e atender às necessidades um do outro como casal e como pais

3. "Becoming Attached" por Robert Karen. Explora a história da teoria do apego e como o vínculo entre pais e filhos molda quem nos tornamos

4. "Parenting from the Inside Out" por Daniel J. Siegel, M.D. e Mary Hartzell, M.Ed. Oferece uma abordagem passo a passo para entender a própria história de vida e o impacto direto que ela tem na parentalidade

5. "Raising a Secure Child" por Kent Hoffman, Glen Cooper e Bert Powell. Este livro ajuda os pais a compreender o comportamento difícil de uma criança como reflexo de necessidades emocionais não atendidas

6. "The Attachment Theory Workbook" por Annie Chen, LMFT. Um livro interativo com ferramentas poderosas para promover a compreensão e a estabilidade no apego

7. "Wired for Love" por Stan Tatkin, PsyD, MFT. Ajuda casais a entender o cérebro e o estilo de apego do parceiro para melhorar a conexão e compreensão mútua.



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